A França esperava uma
rainha. Adeus a Nápoles
«(…) O
enorme navio que levantara âncora no porto de Nápoles nesse dia, 1 de Junho de 1315, com um sol radioso, representava simultaneamente,
aos olhos da rainha de Nápoles, o triunfo da sua política e a melancolia das
missões cumpridas. Isto porque para a sua amada Clemência, uma princesa de vinte
e dois anos sem qualquer dote territorial e cuja riqueza era constituída apenas
pela sua reputação de beleza e de virtude, negociara a mais alta das alianças, o
mais prestigiado dos casamentos. Clemência seria rainha de França. Assim, a mais
destituída das princesas de Anjou receberia o mais poderoso dos reinos e tornar-se-ia
suserana de todos os seus familiares. O seu caso parecia uma ilustração de todos
os ensinamentos evangélicos. É verdade que se dizia que o jovem rei de França, Luís
X, não era muito sedutor de aspecto nem dos mais dotados quanto ao carácter. E isso
que importância tem?! O meu marido, que Deus tenha, era coxo, e nem por isso me
dei mal com ele, pensava Maria da Hungria. Além disso não é para sermos felizes
que somos rainhas. Havia também, à boca fechada, um certo falatório em relação à
morte da rainha Margarida, na prisão, precisamente quando o rei Luís encontrava
dificuldades em obter a anulação do casamento. Mas para quê dar ouvidos a tudo o
que se diz? Maria da Hungria não se sentia inclinada à compaixão por uma
mulher, ainda por cima uma rainha, que traíra os laços conjugais. Não via nada
de surpreendente em que o castigo de Deus se tivesse abatido naturalmente sobre
a escandalosa Margarida.
Com a minha bela
Clemência, a virtude voltará a reinar na corte de Paris, disse ainda consigo mesma.
Como se de um adeus se tratasse, fez, com a sua mão cinzenta, um sinal da Cruz que
atravessou a luminosidade que a rodeava. Em seguida, com o rosto sacudido por tiques
sob o véu imaculado, com o andar rígido, mas ainda decidido, foi encerrar-se na
capela para aí agradecer ao Céu tê-la ajudado a cumprir a sua demorada missão real
e para oferecer ao Senhor o longo sofrimento das mulheres que cumpriram o seu tempo
sobre a Terra. Entretanto, o San Giovanni,
um enorme veleiro com casco branco e dourado e arvorando nas velas as flâmulas de
Anjou, da Hungria e de França, começava a manobrar para se afastar do porto. O capitão
e os tripulantes tinham jurado sobre o Evangelho defender os seus passageiros contra
a tempestade, os piratas do Norte de África e todos os perigos da navegação. A imagem
de São João Baptista, protector do navio, brilhava à proa sob os raios do Sol. Nos
castelos, com seteiras, a meia altura dos mastros, cem homens de armas, vigias,
besteiros, lançadores de pedras, estavam a postos para repelir os piratas, se por
acaso estes se atrevessem a atacar o navio. Os porões transbordavam de víveres.
As ânforas de azeite e de vinho estavam enterradas na areia do lastro, onde tinham
sido igualmente enterrados centenas de ovos para que se conservassem frescos. As
grandes arcas onde eram transportados os vestidos de seda, as jóias e outros
objectos preciosos e todas as prendas de casamento da princesa estavam empilhadas
contra as paredes de uma enorme sala apertada entre o mastro principal e a popa,
e onde dormiriam, sobre tapetes do Oriente, os fidalgos e os cavaleiros de escolta.
Os napolitanos
acotovelavam-se no cais para ver partir aquele que lhes parecia o navio da felicidade.
As mulheres erguiam os filhos acima das cabeças. Entre a multidão, ruidosa e familiar,
como o povo de Nápoles sempre foi, ouvia-se gritar: Guarda comè bella! Addio, Donna
Clemenza! Siate felice! Che Dio la benedica la nostra principessa! Non vi dimenticate
di noi! (Vejam como é bela! Adeus senhora Clemência! Que sejais feliz! Que Deus
abençoe a nossa princesa! Não nos esqueçais!) Isto porque para os napolitanos dona
Clemência era uma espécie de lenda. Na cidade, o seu pai continuava a ser recordado,
o belo Carlos Martel, herdeiro de Nápoles e da Hungria, amigo de poetas e, em particular,
de Dante, príncipe erudito, músico, excelente no uso das armas, que percorria a
península, seguido de duzentos fidalgos franceses, provençais e italianos, todos
vestidos como ele, de escarlate e de um verde sombrio, e montados em cavalos com
arreios de prata. Diziam-no filho de Vénus, já que era possuidor dos cinco
dons que convidam ao amor, e que são a saúde, a beleza, a opulência, o lazer e a
juventude. Fora fulminado pela peste, aos vinte e quatro anos. A mulher, uma
princesa de Habsburgo, morrera ao saber a notícia, oferecendo assim um mito trágico
à imaginação popular.
Nápoles passara
a dedicar a sua ternura a Clemência, que ao crescer se ia assemelhando cada vez
mais ao pai. Esta órfã da família real era muito querida nos bairros mais
pobres, onde ia pessoalmente distribuir as suas esmolas. Os pintores da escola de
Giotto reproduziam nos frescos o seu rosto sereno, os seus cabelos dourados e as
suas longas mãos delicadas. Do alto da plataforma formada pelo tecto do castelo
de popa, trinta pés acima da água, a noiva do rei de França lançava um último olhar
à paisagem da sua infância, ao velho Castel dell’Ovo, onde nascera, ao Castel Nuovo,
ao Maschio Angioino, onde crescera, à multidão irrequieta, que lhe atirava beijos,
a toda aquela cidade deslumbrante, poeirenta e sublime». In Maurice Druon, Os Reis
Malditos, Os Venenos da Coroa, 1956, tradução de Helena Ramos, colecção Cavalo
de Tróia, Gótica, 2006, ISBN 972-792-165-5.
Cortesia de
Gótica/JDACT