«(…)
Chovia. As nuvens davam lugar ao rubor do crepúsculo. Bandos de andorinhas
estridentes rodopiavam no ar acompanhadas por um vento com cheiro a salsugem. Chegados
à hospedaria, Hulco dirigiu-se aos visitantes. Os últimos raios da luz do dia
iluminavam aquele corpo sem graça. Debaixo de um barrete esfarrapado
espreitavam tufos de cabelo eriçados e um nariz verrugoso. Um casaco imundo e
um par de calças coçadas nos joelhos completavam o retrato miserável. Domini ilustrissimi, balbuciou. Seguiu-se
uma lengalenga macarrónica, indizível, da qual se percebeu: Os senhores desejam
que leve para dentro o baú? Depois de um aceno afirmativo, o servo retirou a caixa
do carrinho de mão e transportou-a com dificuldade para o interior do edifício.
A hospedaria era quase integralmente feita de madeira, com as paredes revestidas
com caniços entrelaçados. À entrada, por detrás de um balcão, estava um sujeito
com uma casaca de algodão e dois olhos de coruja. Ginesio, o encarregado,
saudou os peregrinos e declarou que o abade ordenara que lhes fosse reservado o
quarto mais confortável. Saindo, a terceira porta à direita leva ao vosso quarto,
informou com um sorriso brincalhão, apontando para uma escadaria que subia até
ao andar de cima. Se precisardes de qualquer coisa, pedi a mim mesmo. Boa
estada.
Ignazio
e Willalme seguiram as instruções de Ginesio. Transpostos os degraus, em breve se
encontraram em frente de uma porta de madeira. Um verdadeiro luxo, comentou o mercador,
habituado a pernoitar em dormitórios colectivos onde os catres eram apenas
separados por simples cortinas. Hulco, exausto, parou em frente dos hóspedes. Fica
bem aqui, obrigado, agradeceu Ignazio. Podes voltar para os teus trabalhos. O servo
pousou o baú, inclinou a cabeça para se despedir e afastou-se com a já familiar
forma de andar desengonçada. Assim que ficaram a sós, Willalme perguntou: E
agora, o que fazemos? Antes de tudo, escondemos o baú, respondeu o mercador. Depois
vamos jantar. O abade espera-nos à sua mesa. Penso que não terá simpatizado
comigo, o teu abade, comentou o francês. Ignazio sorriu: mas fazes muita questão
em tê-lo como amigo? Como era de esperar não obteve resposta. Willalme era um tipo
de poucas palavras. E entrando no quarto acrescentou: lembra-te que amanhã tens
de partir ao nascer do dia. É preciso que ninguém veja para onde te diriges.
O
mosteiro de Santa Maria del Mare erguia-se sobre a laguna, perto da costa do
mar Adriático. Embora não fosse particularmente imponente, nos dias soalheiros
dominava as superfícies desertas circundadas por canais e pântanos. O edifício
remontava ao primeiro decénio do ano mil. Visto do exterior, era percorrido por
uma série de pequenas janelas como que incrustadas no meio das paredes. A fachada
era virada a este. Do lado esquerdo, além de um modesto campanário, existia uma
série de edifícios encostados uns aos outros: o refeitório, as cozinhas e o dormitório
dos monges. Do lado contrário, os estábulos e a hospedaria, onde se instalavam viajantes
de todo o tipo. A maior parte dos que aqui chegavam fazia o percurso de Ravena
para Veneza. Com frequência dirigiam-se a lugares sagrados, aos mosteiros da Alemanha
e da França ou ao Camino de Santiago de
Compostela. Outros, pelo contrário, dirigiam-se para o Mezzogiorno, tendo como
destino o Templo de San Michele Arcangelo del Gargano». In Marcello Simoni, O Mercador de
Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
Cortesia
CAutor/JDACT