Vestígios
arqueológicos surpreendentes sob as ruas da capital portuguesa
«Ao
calcorrear as ruas de uma cidade, poucos são os que sabem que sob os seus pés
permanecem escondidos séculos de História, vestígios de várias épocas que estão
à espera de, quem sabe, um dia voltarem a ver a luz do dia. Na pressa do dia a
dia ou na descoberta de uma nova cidade, é difícil parar e pensar no que já
desapareceu, ver para além das pedras da calçada e imaginar os edifícios, ruas
e antigas cidades que ali existiram antes. Passear pela Lisboa de hoje é passar
sobre todo esse passado desaparecido. Sob os nossos pés, debaixo de linhas de
eléctrico, ruas asfaltadas e túneis de metro, camadas e camadas de terra contam
as histórias de quem por aqui passou, viveu, morreu. Contam momentos, eras,
séculos de vivência de fenícios, romanos, muçulmanos, cristãos, uma imensidão
de gentes que nestas colinas deixou a sua marca. Mas o passado não está
esquecido. Escavação após escavação, obra após obra, os arqueólogos que aqui
trabalham vão descobrindo todo este passado e, com as suas picaretas, colherins
e escovas, tratam de o registar e trazer de volta à memória colectiva de um
povo. As ruínas de uma casa, um conjunto de cacos, ou uma mão-cheia de espinhas
de peixe são para estes profissionais importantes fontes de informação que mais
tarde dará origem a mais conhecimento, mais História de Lisboa. Infelizmente
nem tudo fica intacto para ser visto e apreciado pelo público, e muito do
trabalho que é feito todos os dias, cada intervenção urbana, cada descoberta,
fica sob a nova cidade que se vai construindo e reconstruindo. Sempre assim foi
nesta Lisboa que já se recriou mais de uma vez. O futuro não pára de chegar, mas
não é por isso que o Passado deve ficar esquecido. Nestas páginas, através de
histórias e personagens que poderão ou não ter existido nas várias Lisboas,
alguns locais e momentos regressam à luz do dia e partilham o conhecimento de
épocas e sítios que muitos desconhecem. Alguns deles desapareceram para sempre,
mas outros ainda podem ser visitados. Num museu, num parque de estacionamento
ou numa casa de banho pública, todos estão à espera de receber visitas!
O
castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
Em
tantos anos de vida nunca dona Mécia tinha visto tamanha desordem! Por todo o
lado se espalhavam pedras de vários tamanhos e pilhas de madeiras, homens sujos
trabalhavam numa grande azáfama enquanto outros passavam o dia gritando ordens,
os carros de bois e as carroças carregadas de material sempre passando de um
lado para o outro, cobrindo o chão de sujidade e largando um cheiro pestilento.
Não gostava desta confusão, e assustavam-na os grandes engenhos de madeira,
altas torres cheias de cordas penduradas que mais lhe pareciam forcas e que não
sabia para o que serviam. Mas o que realmente a incomodava era a poeira, agora
sempre pairando no ar, e o barulho constante do bater da pedra. Também não
gostava de ter de se desviar do caminho de tantos anos e ser obrigada a dar uma
tão grande volta para chegar às cozinhas. As suas pernas já não eram as mesmas
que, há mais de 50 anos, haviam entrado naquele castelo conduzindo uma simples
criada de cozinha ao seu primeiro dia de trabalho.
Muito
tinha mudado desde essa altura. Pelos seus olhos e pelas suas cozinhas tinham
passado as refeições de quatro reis, pois ainda vira o velho Afonso IV e o
desafortunado Pedro que tantas histórias tinha feito contar por esse país
afora. Pior só o seu filho, o desgraçado Fernando, que a si trouxera a má sorte
ao casar com aquela Aleivosa, mulher de má fama que tanto mal causara ao reino.
Felizmente poucas vezes a servira, pois sabendo-se pouco queridos em Lisboa
raramente cá vinham suas majestades. Tudo era diferente agora, com o novo rei João,
aquele Mestre de Avis que o povo escolhera ainda há poucos anos num dia sem
igual em que a cidade saíra à rua para se fazer ouvir.
Dona
Mécia bem ouvira o eco da gente que subira a colina, o bramor da multidão que
se concentrara na Sé e no Paço a-par-de-S. Martinho a ver matar bispos e condes
castelhanos. Não esquecera os longos meses de cerco que se tinham seguido, com
os castelhanos acampados às portas da cidade sem deixar ninguém entrar ou sair.
Muito tinha trabalhado nessa altura, tentando acudir a todos os que acorriam ao
castelo a pedir a comida que ali também escasseava. Valera-lhes nessa altura a
vontade de Deus, que tinha achado por bem enviar a peste aos malditos
castelhanos para os obrigar a abandonar os arrabaldes e a voltar para de onde
tinham vindo!» In Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.
Cortesia
de EdosLivros/JDACT