segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Baudolino. Umberto Eco. «O que mais impressionava em Baudolino, não importa o que dissesse, era o facto de ele olhar com o canto do olho o seu interlocutor, como para adverti-lo que não o levasse muito a sério»

jdact e wikipedia

Baudolino encontra Nicetas Coniates
«O que é isso?, perguntou Nicetas, girando entre as mãos o pergaminho e tentando a leitura de algumas linhas. É o meu primeiro exercício de escrita, respondeu Baudolino, e desde que o escrevi, acho que devia ter uns quatorze anos, e ainda não passava de uma criatura do bosque, costumo trazê-lo comigo como um amuleto. Acabei preenchendo depois muitos outros pergaminhos, às vezes todos os dias. Eu tinha a certeza de existir, simplesmente porque podia contar de noite o que me acontecia de manhã. Mais tarde, bastavam-me alguns registos mensais, poucas linhas para me lembrar dos acontecimentos mais importantes. Dizia de mim para mim, quando eu estiver com uma idade avançada, vale dizer, agora, hei de escrever as Gesta Baudolini, tendo por base estas notas. Assim, no curso de minhas viagens, eu trazia comigo a história da minha vida. Mas na fuga do reino de Preste João... Preste João? Jamais ouvi esse nome. Eu te falarei dele, e talvez demasiadamente. Mas como ia dizendo: ao fugir, perdi aqueles papéis. Foi como se tivesse perdido a minha própria vida. Dirás o que puderes lembrar. Trabalho com fragmentos de episódios, restos de acontecimentos, e tiro disso tudo uma história, tecida num desenho providencial. Quando me salvaste, tu me deste o pouco futuro que me resta e te recompensarei, devolvendo a ti o passado que perdeste. Mas a minha história talvez não faça nenhum sentido...
Não existem histórias sem sentido. Sou um daqueles homens que o sabem encontrar até mesmo onde os outros não o vêem. Depois disso, a história se transforma no livro dos vivos, como uma trombeta poderosa, que ressuscita do sepulcro aqueles que há séculos não passavam de pó... Para isso, todavia, precisamos de tempo, sendo realmente necessário considerar os acontecimentos, combiná-los, descobrir-lhe os nexos, mesmo aqueles menos visíveis. Além do quê, não temos outra coisa a fazer, os teus genoveses dizem que devemos esperar que se acalme a raiva daqueles cães. Nicetas Coniates, antes orador da corte, juiz supremo do Império, juiz do Véu, dos segredos, ou seja, como diriam os latinos, chanceler do basileu de Bizâncio, além de historiador de muitos Comnenos e Ângelos, olhava curioso para o homem que estava à sua frente. Baudolino dissera-lhe que se haviam encontrado em Galípolis, nos tempos do imperador Frederico, mas quanto à presença de Baudolino não tinha a certeza, no meio de tantos ministeriais, ao passo que Nicetas, que tratava o basileu pelo nome, estava bem mais visível. Estaria mentindo? Em todo o caso, foi ele quem o salvou da fúria dos invasores, quem o conduziu para um lugar seguro, quem o reuniu com a família e quem prometia levá-lo para fora de Constantinopla...
Nicetas esquadrinhava o seu salvador. Mais do que um cristão, parecia um sarraceno. Rosto queimado pelo sol, pálida cicatriz que lhe cortava a face, coroa de cabelos, ainda ruivos, que lhe conferiam uma aparência leonina. Nicetas acabaria por surpreender-se mais tarde ao saber que aquele homem tinha mais de sessenta anos. As mãos eram grossas e, ao cruzá-las sobre o ventre, notavam-se-lhe as juntas nodosas. Mãos de camponês, feitas mais para a enxada do que para a espada. E no entanto, falava grego fluentemente, sem deitar saliva a cada palavra, como faziam quase sempre os estrangeiros, e Nicetas o ouvira comunicar-se com alguns invasores numa língua áspera, que ele falava de modo seco e veloz, como quem sabe usá-la também para grosserias. Por outro lado, disse-lhe na noite anterior que possuía um dom: bastava que ouvisse duas pessoas falando uma língua qualquer e pouco depois era capaz de falar como elas. Dádiva singular, que Nicetas julgava ter sido concedida apenas aos apóstolos. Viver na corte, e naquela corte, havia ensinado Nicetas a valorizar as pessoas com serena desconfiança. O que mais impressionava em Baudolino, não importa o que dissesse, era o facto de ele olhar com o canto do olho o seu interlocutor, como para adverti-lo que não o levasse muito a sério. Hábito que se poderia tolerar em qualquer um, excepto numa pessoa de quem se espera um testemunho voraz, que devia ser interpretado como História. Mas, por outro lado, Nicetas era curioso por natureza. Gostava de ouvir o que os outros contavam, e não somente a respeito de coisas que não conhecia. Se outros contavam coisas que ele vira com os próprios olhos, era como se as observasse sob outro ponto de vista, como se estivesse no alto de uma daquelas montanhas dos ícones, e visse as pedras tal como foram vistas pelos apóstolos na montanha, e não como os fiéis aqui em baixo. Além disso, gostava de interrogar os latinos, tão diferentes dos gregos, a começar por aquelas línguas novíssimas, diversas umas das outras». In Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.

Cortesia de ERecord/JDACT