domingo, 6 de dezembro de 2015

A Última Quimera. Ana Miranda. «Esther viúva, vestida de preto, com um véu transparente negro, luvas escondendo as suas mãos delicadas. Mulher de uma beleza angelical, olhos escuros, em amêndoa, palidez de magnólia, sobrancelhas grossas…»

Cortesia de wikipedia

A plenitude da existência
«(…) E parte, caminhando depressa, como se fugisse. Conto os seus passos pela calçada: treze; no décimo quarto ele começa a atravessar a rua, no vigésimo oitavo cruza com uma carruagem e em seguida desaparece na esquina. Fico sozinho. Agora sou eu quem está imóvel. Com que, então, o senhor Bilac não apreciou o poema? Talvez eu devesse ter escolhido outro, onde não aparecessem palavras tão pouco poéticas e sentimentos tão vis. Quiçá, sejam versos materialistas demais. Mas esta é a verdade, sem máscaras: Olavo Bilac não apreciou o poema. Imagino Augusto estendido numa cama, na pequena cidade perdida no interior de Minas Gerais, pálido, gelado, lábios azulados, mãos rígidas, e Esther debruçada sobre o seu peito, chorando. Esther. Como estará ela? Tiro do bolso o fósforo e acendo o meu cigarro. Fumando caminho na rua pensando nela, Esther viúva, vestida de preto, com um véu transparente negro, luvas escondendo as suas mãos delicadas. Mulher de uma beleza angelical, olhos escuros, em amêndoa, palidez de magnólia, sobrancelhas grossas, cintura de princesa vinda do reino de Catai ou Samarcanda, seios erectos, que não precisam de espartilho, como os de uma adolescente. Esther é novamente uma mulher livre. Ao pensar nisso sinto-me sem ar. Percebo que estou no Passeio Público e saio em busca de um banco para sentar-me e me refazer. O Passeio Público é um dos lugares onde mais gosto de permanecer, nas minhas horas de reflexão. Não durante o dia, quando as crianças enchem as artérias com a sua presença alegre e os rapazes vêm cortejar as jovens ou procurar uma delas para os seus devaneios; nem quando senhores e damas cruzam as alamedas, ou jogam cartas, ou ouvem a banda dos alemães; tampouco quando, de noite, os aristocratas passam em direcção à casa de Glaziou ou os boémios vão ao café-cantante. Gosto das horas raras em que o Passeio está deserto, quando apenas um ou outro transeunte caminha silencioso, quase invisível, e homens da Guarda rondam atrás de vadios. Nesses momentos de solidão as árvores parecem soberanas, o lago permanece limpo; as águas do chafariz do menino podem ser ouvidas como uma música monótona, propensa ao raciocínio e à ruminaçã de paixões secretas. Este é um momento assim, e me sento no primeiro banco que avisto. A lua está baixa, o bosque mergulhado em penumbra, embora as copas de algumas árvores brilhem sob uma luz prateada. No chão, avisto um filhote de pássaro agonizando: um corpo magro, os ossos delineados sob a pele, o peito estufado pulsando. A visão deste animal ainda mal emplumado, que morre sem jamais ter podido experimentar a plenitude de sua existência, que é o acto de voar, leva-me novamente a pensar em Augusto. Por causa deste pequeno pássaro que parece um fecto, rememoro uma das muitas vezes em que visitei Augusto, uns dois ou três anos atrás. Ele era um obscuro professor de geografia, corografia e cosmografia do Ginásio Nacional do Rio de Janeiro e agente da Companhia de Seguros Sul-América. Morava, com Esther, ainda na praça do cais Mauá, num sobrado de janelas altas e grades de ferro batido na sacada. Ocupavam apenas o segundo andar, o primeiro servia como residência de tia Alice, Bebé e tio Bernardino. Para chegar aos aposentos de Augusto, era preciso subir uma escada de madeira que rangia e tremia sob os nossos pés. Este era o segundo lugar onde o casal morou. Dali, logo se mudariam para uma casa de pensão na rua São Clemente, em Botafogo; depois para a Marechal Hermes, a seguir para a Malvino Reis, depois para a Haddock Lobo, depois para um chalé na rua Delfina, uma rua deserta sem luz eléctrica, e afinal foram para a Aristides Lobo, onde viveram em duas diferentes casas de pensão, antes de partirem para Leopoldina, e ainda outros endereços dos quais não tive conhecimento, sempre lugares pobres ou decadentes, numa melancólica peregrinação, não sei se em busca de algo ou se fugindo de alguma coisa. Naquela tarde em que o visitei no sobrado, Augusto me pareceu um homem mais sofrido, mais velho do que os vinte e alguns anos que tinha na realidade. Vestia roupas ordinárias, embora elegantes; conservava o ar de alguém que vivia nas alturas e estava nesta terra apenas descansando de suas viagens espirituais e das anormalidades de seu pensamento. Eu temia encontrá-lo sentado numa poltrona, abatido por um de seus acessos de dispneia, com os pés numa bacia de água quente e aplicando sinapismos nas pernas. Mas não. Continuava cioso de sua dignidade, altivo e obsecado pelo enigma da morte, que parecia pairar sobre a sua cabeça, com asas negras abertas mantendo-o numa região de sombra. Fazia um frio de quebrar a caveira e Augusto usava sobre os ombros uma velha manta preta de lã, tricotada por Esther. Como vai esse peregrino audaz?, perguntei. Augusto abraçou-me fraternalmente, me fez entrar e sentar-me na melhor poltrona da sala. Havia um piano encostado numa das paredes, com a tampa do teclado aberta e uma partitura na estante, entre as duas velas ainda acesas nos candelabros, o que podia significar que Esther estava ali antes de eu chegar e talvez tivesse parado de tocar para refazer o penteado ou vestir um casaco melhor a fim de me receber. Imaginei Esther sentada ao piano, tocando Virgens mortas, com os seus dedos de pontas finas, numa precisão matemática, varrendo tudo da minha mente, impondo-se com irresistível violência, como fazendo-me mergulhar num sono, agitando os meus fantasmas amordaçados por minhas proibições, suscitando os meus imperiosos sentimentos». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT