A plenitude da existência
«(…) E parte, caminhando depressa, como se fugisse. Conto
os seus passos pela calçada: treze; no décimo quarto ele começa a atravessar a
rua, no vigésimo oitavo cruza com uma carruagem e em seguida desaparece na
esquina. Fico sozinho. Agora sou eu quem está imóvel. Com que, então, o senhor
Bilac não apreciou o poema? Talvez eu devesse ter escolhido outro, onde não
aparecessem palavras tão pouco poéticas e sentimentos tão vis. Quiçá, sejam
versos materialistas demais. Mas esta é a verdade, sem máscaras: Olavo Bilac
não apreciou o poema. Imagino Augusto estendido numa cama, na pequena cidade
perdida no interior de Minas Gerais, pálido, gelado, lábios azulados, mãos
rígidas, e Esther debruçada sobre o seu peito, chorando. Esther. Como estará
ela? Tiro do bolso o fósforo e acendo o meu cigarro. Fumando caminho na rua
pensando nela, Esther viúva, vestida de preto, com um véu transparente negro,
luvas escondendo as suas mãos delicadas. Mulher de uma beleza angelical, olhos
escuros, em amêndoa, palidez de magnólia, sobrancelhas grossas, cintura de
princesa vinda do reino de Catai ou Samarcanda, seios erectos, que não precisam
de espartilho, como os de uma adolescente. Esther é novamente uma mulher livre.
Ao pensar nisso sinto-me sem ar. Percebo que estou no Passeio Público e saio em
busca de um banco para sentar-me e me refazer. O Passeio Público é um dos
lugares onde mais gosto de permanecer, nas minhas horas de reflexão. Não
durante o dia, quando as crianças enchem as artérias com a sua presença alegre
e os rapazes vêm cortejar as jovens ou procurar uma delas para os seus
devaneios; nem quando senhores e damas cruzam as alamedas, ou jogam cartas, ou
ouvem a banda dos alemães; tampouco quando, de noite, os aristocratas passam em
direcção à casa de Glaziou ou os boémios vão ao café-cantante. Gosto das horas raras
em que o Passeio está deserto, quando apenas um ou outro transeunte caminha
silencioso, quase invisível, e homens da Guarda rondam atrás de vadios. Nesses momentos
de solidão as árvores parecem soberanas, o lago permanece limpo; as águas do
chafariz do menino podem ser ouvidas como uma música monótona, propensa ao
raciocínio e à ruminaçã de paixões secretas. Este é um momento assim, e me
sento no primeiro banco que avisto. A lua está baixa, o bosque mergulhado em
penumbra, embora as copas de algumas árvores brilhem sob uma luz prateada. No
chão, avisto um filhote de pássaro agonizando: um corpo magro, os ossos
delineados sob a pele, o peito estufado pulsando. A visão deste animal ainda
mal emplumado, que morre sem jamais ter podido experimentar a plenitude de sua
existência, que é o acto de voar, leva-me novamente a pensar em Augusto. Por
causa deste pequeno pássaro que parece um fecto, rememoro uma das muitas vezes
em que visitei Augusto, uns dois ou três anos atrás. Ele era um obscuro
professor de geografia, corografia e cosmografia do Ginásio Nacional do Rio de
Janeiro e agente da Companhia de Seguros Sul-América. Morava, com Esther, ainda
na praça do cais Mauá, num sobrado de janelas altas e grades de ferro batido na
sacada. Ocupavam apenas o segundo andar, o primeiro servia como residência de
tia Alice, Bebé e tio Bernardino. Para chegar aos aposentos de Augusto, era
preciso subir uma escada de madeira que rangia e tremia sob os nossos pés. Este
era o segundo lugar onde o casal morou. Dali, logo se mudariam para uma casa de
pensão na rua São Clemente, em Botafogo; depois para a Marechal Hermes, a
seguir para a Malvino Reis, depois para a Haddock Lobo, depois para um chalé na
rua Delfina, uma rua deserta sem luz eléctrica, e afinal foram para a Aristides
Lobo, onde viveram em duas diferentes casas de pensão, antes de partirem para
Leopoldina, e ainda outros endereços dos quais não tive conhecimento, sempre
lugares pobres ou decadentes, numa melancólica peregrinação, não sei se em
busca de algo ou se fugindo de alguma coisa. Naquela tarde em que o visitei no
sobrado, Augusto me pareceu um homem mais sofrido, mais velho do que os vinte e
alguns anos que tinha na realidade. Vestia roupas ordinárias, embora elegantes;
conservava o ar de alguém que vivia nas alturas e estava nesta terra apenas
descansando de suas viagens espirituais e das anormalidades de seu pensamento. Eu
temia encontrá-lo sentado numa poltrona, abatido por um de seus acessos de
dispneia, com os pés numa bacia de água quente e aplicando sinapismos nas
pernas. Mas não. Continuava cioso de sua dignidade, altivo e obsecado pelo
enigma da morte, que parecia pairar sobre a sua cabeça, com asas negras abertas
mantendo-o numa região de sombra. Fazia um frio de quebrar a caveira e Augusto
usava sobre os ombros uma velha manta preta de lã, tricotada por Esther. Como
vai esse peregrino audaz?, perguntei. Augusto abraçou-me fraternalmente, me fez
entrar e sentar-me na melhor poltrona da sala. Havia um piano encostado numa
das paredes, com a tampa do teclado aberta e uma partitura na estante, entre as
duas velas ainda acesas nos candelabros, o que podia significar que Esther
estava ali antes de eu chegar e talvez tivesse parado de tocar para refazer o
penteado ou vestir um casaco melhor a fim de me receber. Imaginei Esther
sentada ao piano, tocando Virgens mortas, com os seus dedos de pontas finas,
numa precisão matemática, varrendo tudo da minha mente, impondo-se com
irresistível violência, como fazendo-me mergulhar num sono, agitando os meus
fantasmas amordaçados por minhas proibições, suscitando os meus imperiosos
sentimentos». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN
857-164-454-3.
Cortesia de CdasLetras/JDACT