domingo, 6 de dezembro de 2015

O Códice Secreto. Lev Grossman. «Lançou-lhe um sorriso de derreter o coração e tirou-lhe, desvanecida, o brinco da mão. Nesse momento ele reparou num pormenor que lhe escapara: uma gota de sangue, grossa e redonda, pendia trémula do lóbulo delicado da sua orelha»

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«(…) A bagagem que estava empilhada no carrinho era extravagante, de um couro verde muito escuro, com uma textura áspera e rugosa e incluía peças de todos os tamanhos e feitios imagináveis, desde pequenas maletas cúbicas, passando por gigantescos baús de porão, guarnecidos com protecções brilhantes de metal, até uma caixa de chapéus do tamanho de um tambor de bateria. Tinha um aspecto antiquado ou era vintage, ou ume copia rigorosa, evocava o tom glamoroso de um transatlântico do início do século XX, daqueles que apareciam nos antigos jornais de actualidades e serem baptizados com garrafas de champanhe no meio de tempestades silenciosas de papelinhos. Um sedan com vidros fumados esperava junto ao passeio. Todas as peças da bagagem exibiam uma etiqueta com uma única palavra, em letras maiores ou menores: Weymarshe. Edward decidiu quebrar o silêncio. Como é?, perguntou. O brinco, quero eu dizer. A mulher olhou para ele como se um shih tzu que fosse a passar tivesse subitamente falado. De prata. O fecho deve ter-se aberto. Fez uma pausa e depois acrescentou desanimada: É um Yardsdale. O homem mais velho cansou-se de esperar e ajoelhou-se também, não sem antes ter puxado para cima as pernas das calças, com o ar de alguém que e forçado a fazer uma coisa que está muito abaixo da sua dignidade. Em breve juntou-se lhes o motorista, um homem pálido, com um queixo indefinido, praticamente uma linha direita que ia do lábio inferior ao colarinho, que olhou atentamente para baixo da limusina. O porteiro acabou de meter as malas no porta-bagagem. Edward teve a sensação de que ambos partilhavam o desagrado do homem mais velho pela mulher do chapéu. Estavam aliados contra ela
Edward sentiu qualquer coisa esmagar-se sob o seu tacão direito. Retirou o pé e surgiram os restos calcados do brinco. A avaliar pelo gémeo sobrevivente, deveria ter tido a forma de uma delicada ampulheta de prata, mas agora não passava de um bocado de pechisbeque amassado, impossível de distinguir de um invólucro de pastilha elástica. Era bem feito, por o ter arrastado para aquilo, pensou ele. Levantou-se. Desculpe, disse, sem se esforçar por parecer consternado. Não o vi. Edward estendeu a mão. A mulher também se levantou, com o rosto vermelho por ter estado tanto tempo acocorada. Ele esperava uma explosão, mas em vez disso estampou-se no rosto dela a expressão de quem recebia de prenda de Natal exactamente o que desejara. Lançou-lhe um sorriso de derreter o coração e tirou-lhe, desvanecida, o brinco da mão. Nesse momento ele reparou num pormenor que lhe escapara: uma gota de sangue, grossa e redonda, pendia trémula do lóbulo delicado da sua orelha. Mesmo por baixo, no ombro do vestido, via-se mais um pingo de sangue. Olha, Peter! Ele deu completamente cabo do brinco! Voltou-se alegremente para o marido, que sacudia das mangas uma poeira invisível. Bem, pelo menos podias fingir que estavas interessado. Ele olhou para os destroços que ela segurava na mão. É verdade, muito lindo. E assim retomaram as aparências. A mulher revirou os olhos para Edward, com uma expressão conspirativa, depois dirigiu-se para o carro. O motorista de queixo inexistente abriu a porta e ela entrou para o banco de trás. Bem, de qualquer modo, muito obrigada, disse a Edward, das profundidades do sedan. O motorista lançou a Edward um olhar de advertência, como para dizer: e já está, não vais levar mais nada, e a limusina afastou-se na curva, com um chiar de pneus curto e agudo. Seriam gente famosa? Deveria tê-los reconhecido? Um pequeno triângulo de cor creme do vestido da mulher ficara preso na porta quando esta se fechou e abanava freneticamente ao vento. Edward apontou e tentou gritar-lhes qualquer coisa, depois desistiu. De que é que servia? Quando o carro fez a curva para Park Avenue, sempre a acelerar, Edward observou-o a afastar-se, com uma vaga sensação de alívio. No entanto, sentia igualmente uma ponta de desilusão tardia, o mesmo que a Alice poderia ter sentido se tivesse tomado a decisão sensata e prudente, mas muito chata, de não seguir o Coelho Branco pela toca dentro.
Abanou a cabeça e voltou a concentrar-se na situação presente. Estava oficialmente de férias, duas semanas livres e sem nada que fazer, antes de ocupar o seu lugar no escritório de Londres, mas tinha ainda aceitado visitar um cliente antes de partir. Era um casal colossalmente rico, e Edward tinha contribuído modestamente para os tornar ainda mais ricos, através de um negócio altamente elaborado que ele tinha orquestrado e que envolvia investimentos no mercado da prata, uma cadeia de quintas onde eram apuradas raças de cavalos e uma enorme e enormemente subavaliada companhia de seguros de aviação. A organização da operação tinha-lhe ocupado várias semanas, com uma investigação aborrecidíssima e esgotante, mas quando por fim colocou todos os elementos em acção, funcionara tudo na perfeição, como a dança das cadeiras, mas ao contrário; quando a música parou, todas as outras pessoas ficaram sentadas em posições desconfortáveis, enquanto ele ficava de pé, livre para se retirar, com uma quantidade impressionante de dinheiro Ele nem sequer conhecia os clientes, não sabia que eles sabiam quem ele era, mas, segundo parecia, o patrão tinha-lhes dado o seu nome, provavelmente tinham-lhe perguntado quem era o jovem promissor que lhes dera a ganhar todo aquele dinheiro e era por isso que tinham solicitado a sua presença naquele dia. Tinha recebido instruções para os manter satisfeitos, custasse o que custasse, Na altura, protestara, para que é que servia começar uma relação nova com um cliente, no momento preciso em que se preparava para partir?, mas agora verificava com um certo mal-estar que se encontrava num estado de quase ansiedade». In Lev Grossman, O Códice Secreto, 2004, tradução de Maria Colares, Editorial Presença, 2005, Edição Sicidea, colecção Enigmas da História, 2006, DLegal B-54693-2006.
                 
Cortesia de Sicidea/JDACT