sábado, 19 de dezembro de 2015

O Inverno em Lisboa António M Molina. «Vi que olhava muito para uma empregada fardada e loura que servia às mesas e que a dada altura trocou um sorriso com ela. Fez-lhe um sinal: pouco depois, a empregada deixou um whisky sobre o tampo do piano»

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«Tinham passado quase dois anos desde a última vez que vira Santiago Biralbo, mas quando tornei a encontrar-me com ele, à meia-noite, ao balcão do Metropolitano, houve na nossa mútua saudação a mesma falta de ênfase que se tivéssemos estado a beber juntos na noite anterior, não em Madrid, mas em San Sebastian, no bar de Floro Bloom, onde ele tinha estado a tocar durante uma larga temporada. Tocava agora no Metropolitano, com um contrabaixista negro e um baterista francês muito nervoso e muito novo que parecia nórdico e a quem chamava Buby. O grupo chamava-se Giacomo Dolphin Trio: nessa altura, eu ignorava que Biralbo tinha mudado de nome e que Giacomo Dolphin não era um pseudónimo sonoro para o seu ofício de pianista mas o nome que tinha agora no passaporte. Antes de o ver, quase o reconheci pelo modo de tocar piano. Fazia como se pusesse na música a menor quantidade de esforço possível, como se o que estava a tocar não tivesse muito a ver com ele. Eu estava sentado ao balcão, de costas para os músicos, e quando ouvi que o piano insinuava muito vagarosamente as notas de uma canção cujo título não consegui recordar tive um brusco pressentimento, talvez essa sensação abstracta de passado que algumas vezes percebi na música, e quando me voltei ainda não sabia que o que estava reconhecendo era uma noite perdida no Lady Bird, San Sebastian, onde há muito tempo não vou. O piano quase deixou de se ouvir, refugiando-se atrás do som do contrabaixo e da bateria, e então, ao percorrer sem intenção as caras dos bebedores e dos músicos, tão vagas entre o fumo, vi o perfil de Biralbo que tocava com os olhos semicerrados e um cigarro nos lábios.
Reconheci-o logo, mas não posso dizer que não tivesse mudado. Talvez tivesse, só que numa direcção de todo previsível. Vestia uma camisa escura e uma gravata preta, e o tempo tinha dado ao seu rosto uma sumária dignidade vertical. Mais tarde dei conta de que sempre tinha notado nele essa qualidade imutável dos que vivem, ainda que não o saibam, de acordo com um destino que provavelmente lhes foi fixado na adolescência. Depois dos trinta anos, quando toda a gente cai numa decadência mais ignóbil que a velhice, eles aguentam-se numa extrema juventude ao mesmo tempo exasperada e serena, numa espécie de coragem tranquila e receosa. O olhar foi a mudança mais indubitável que notei em Biralbo naquela noite, mas aquele firme olhar de indiferença ou ironia era o de um adolescente fortalecido pelo conhecimento. Aprendi que por isso mesmo era tão difícil aguentá-lo. Durante mais de meia hora bebi cerveja preta gelada e observei-o. Tocava sem se debruçar sobre o teclado, mas levantando a cabeça, para que o fumo do cigarro não lhe fosse para os olhos. Tocava olhando para o público e fazendo rápidos sinais aos outros músicos, e as suas mãos moviam-se a uma velocidade que parecia excluir a premeditação ou a técnica, como se obedecessem unicamente a um acaso que um segundo mais tarde, no ar onde soavam as notas, se organizaria por si mesmo numa melodia, tal como o fumo de um cigarro forma espirais azuis.
Em qualquer caso, era como se nada disso tivesse a ver com o pensamento ou a atenção de Biralbo. Vi que olhava muito para uma empregada fardada e loura que servia às mesas e que a dada altura trocou um sorriso com ela. Fez-lhe um sinal: pouco depois, a empregada deixou um whisky sobre o tampo do piano. Também a sua maneira de tocar tinha mudado com o tempo. Não percebo muito de música, e quase nunca me interessei demasiado por ela, mas ouvindo Biralbo no Lady Bird tinha notado com algum alívio que a música pode não ser indecifrável mas contar histórias. Nessa noite, enquanto o escutava no Metropolitano, achava, de maneira muito vaga, que Biralbo tocava melhor que há dois anos atrás, mas nos poucos minutos que estive a observá-lo deixei de ouvir o piano para me interessar pelas mudanças que se tinham operado nos seus menores gestos: tocava levantado, por exemplo, e não dobrado sobre o teclado como noutro tempo, algumas vezes tocava a solo com a mão esquerda para agarrar com a outra o copo ou deixar o cigarro no cinzeiro. Vi também o seu sorriso, não o mesmo que trocava com a empregada loura. Sorria para o contrabaixista ou para si próprio com uma brusca felicidade que ignorava o mundo, como pode sorrir um cego, certo de que ninguém vai averiguar ou partilhar a causa do seu regozijo. Olhando para o contrabaixista pensei que essa maneira de sorrir é mais frequente nos negros e que está cheia de desafio e orgulho. O abuso da solidão e da cerveja gelada levava-me a ideias arbitrárias: pensei também que o baterista nórdico, tão ensimesmado e com o seu ar, pertencia a outra linhagem, e que entre Biralbo e o contrabaixista havia uma espécie de cumplicidade racial». In António Muñoz Molina, O Inverno em Lisboa, 1987, tradução de Carlos Pereira, Quetzal Editores, Lisboa, 1988, NQZ 010-063-888.

Cortesia de Quetzal/JDACT