terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Tempo de Lacraus. António Borges Coelho. «Bebem como esponjas e a garrafeira é que paga. No fim, ainda me olham de alto. Sempre fui amigo do André mas a Joana ainda não o esqueceu... Pelo menos, parece. Olhem o rio!»

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«O automóvel entrou na curva e quase abalroou o cavaleiro descalço. Passada a surpresa, os olhos dos viajantes ficaram ainda presos no cavalo, na albarda rota a mostrar a palha, nos pés encardidos do cavaleiro. O cavalo abriu caminho na planície, nos vales, nas encostas, nos cabeços. Mediu o tempo. Quando os roteiros marcavam uma jornada, entendia-se um dia de montada. O cavalo trepa lançando as patas dianteiras para o alto, firma-as e arremessa para diante as patas traseiras. Com o rabo afugenta o mosquedo mas não liberta os grandes olhos sofredores. Aí só um golpe de cabeça ou quando resfolega e o vento relinchante lhe sopra das narinas.
Os cavalos a motor sobem e descem sem esforço aparente, não sofrem com os insectos, não esfolam o rabo do cavaleiro, o seu relincho é estereofónico e suave. E espalham entre as giestas vozes humanas recolhidas de todos os cantos do planeta. O bicho cavalo cega-se com o doirado da giesta e rapa-a com os dentes, resfolegando e enfeitando-se de amarelo. As montadas mecânicas bebem gasolina amarelo-suja que explode e põe em movimento as rodas dentadas e as grossas rodas negras de borracha. O cavalo traz nas patas ferraduras pregadas a fogo. No lombo, a albarda, a sela ou o selim. Na testada, o cabresto enfeitado com meia lua. Os cavalos de chapa abrem grandes olhos de luz e vidro que afugentam a noite e atraem os insectos e os animais nocturnos. Cavalos houve cujo nome chegou até nós, como o Babieca do Mio Cid. No tempo do senhor rei Afonso V exigia-se licença para lançar a égua ao burro. E cavaleiro que não queria perder a cavalaria deveria montar em cavalo, não em mula. Afinal não é a mula alimária contranatura? Isto para não falar nas mulas sem cabeça. O cavalo, alazão ou fogoso ginete, também tem o seu senão. Quando o cio lhe estende a espada longa e balouçante, levanta as patas dianteiras sobre a égua e relincha e sofre até, atinar com a fenda.
A tarde vai alta. O espinhaço da serra acompanha a corrida do automóvel. Muros de granito, almofadados a musgo e conchilros, separam os lameiros. Um regato de cinza líquida, coada pela encosta, corre ao lado do asfalto. No verde dos castanheiros, o brilho verde-claro dos ouriços. André, Basílio e Joana trazem aquela paisagem marcada nas suas vidas. Cada curva evoca um nome no seu mapa interior, filhos que são daquela terra ossuda. Basílio sente um desejo irresistível de pisar com as botas de caça a terra pedregosa, coberta de mato, os cães colados às canelas, prontos para o primeiro tiro. Aos seis anos já montava a cavalo. Mesmo em pêlo, disse André. Também aprendi muito nova. Estou a ver-te a entrar na praça da vila, as pernas escarranchadas sobre a égua como uma aparição. Eras a fidalga. O teu pai escoltava-te noutro cavalo lançando chumbo pelos olhos. Ainda ouço as patas da égua na calçada. No alto, o teu corpo resplandecente de sol, os olhos grandes no veludo afogueado do rosto.
Quando eu vinha à vila a cavalo... Lembras-te? Joana adivinhava os pensamentos de André. Se me lembro... Querem lá ver a cavaleira, disse Basílio. Lembravas a donzela que vai à guerra. Quem vai à guerra dá e leva... Não sei onde está a graça, pensa Basílio. Mas se abro a boca, aqui del-rei que sou casca grossa. Joana, a filósofa, gosta de se envolver com os homens da escrita. Bebem como esponjas e a garrafeira é que paga. No fim, ainda me olham de alto. Sempre fui amigo do André mas a Joana ainda não o esqueceu... Pelo menos, parece. Olhem o rio!
O rio era o Douro. Corria entre areais, circundando ilhotas de pedra e areia. Na outra margem a Régua, com os telhados vermelhos sobre o branco das casas e o faiscar das janelas e varandas. É uma cobra de água. André sentiu de novo no corpo a roupeta preta, o chapéu redondo a coroar a cabeça de menino. Parecia o Menino Jesus da Cartolinha! Vinha do seminário, expulso não pelo Anjo de espada de fogo que expulsara Adão do paraíso, mas por um frade gordo, ao mesmo tempo afável e cruel. - Ainda hás-de voltar a ser o mesmo, dizia o frade». In António Borges Coelho, Tempo de Lacraus, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-271-6.

Cortesia de Caminho/JDACT