O infante Fernando não quer ficar
«(…) É da minha
fraternal companhia que vos quereis afastar, irmão?, questionou o rei. Que
tendes vós contra mim? Não, irmão, não é de vós que me quero apartar, declarou Fernando,
mas do peso das vossas realizações. Como posso eu ter ambições se os meus mais
próximos sempre carregam sobre mim um poder que eu não sou capaz de devolver?
Que posso fazer diante da vossa inteligência, das vossas iniciativas, dos
vossos poderosos aliados? Que respeito me atribuem, se sou intercessor das
vossas desavenças, testemunha e acompanhante das vossas uniões matrimoniais,
presenteador do nascimento dos vossos filhos, mestre-sala das reuniões
cortesãs? Duarte I sentiu um abalo imenso. Considerava as palavras de Fernando
injustas, via nelas um despropósito num contexto provocatório, mais uma
instrumentalização de terceiros do que palavras sentidas e próprias. Pela sua
parte, o infante Fernando tentava descortinar no rei um momento de fraqueza.
Aos poucos, recomposto, mais pelo abatimento de Duarte I do que pela
propriedade das suas palavras, o infante esforçou-se por dar veracidade a um
discurso pensado por outros que não ele: aflijo-me. Até hoje não consegui
impôr-me com glória no campo de batalha e, não se me deparando essa
oportunidade, não tenho nenhum feito de armas que enobreça a minha Casa. É disto
que vos falo. Mais do que os acrescentamentos e as mercês que me são devidos, é
a honra acima de tudo que procuro, tal como vós e nossos irmãos a têm bem
nutrida. A glória de vencerdes os inimigos da religião de Cristo em Ceuta
trouxe-vos o merecido galardão de cavaleiro, uma honra ganha com suor e sangue,
o que vos dá ainda maior dignidade para governar. Ninguém mais do que vós
merecia essa homenagem, estou certo. Também não serei eu que nego o direito que
Pedro e Henrique tiveram em constituir as suas Casas com cabedais suficientes
para suportar as despesas e manter uma corte disciplinada e fiel. Fez bem nosso
pai em conceder-lhes os ducados de Coimbra e Viseu e todas as terras ao seu
redor, pois um príncipe não pode viver de esmolas alheias, como eu vivo, lá
porque fui esquecido e vós pouco vos lembrastes de mim.
Imparável, Fernando
continuou com as razões da sua desdita, lamentações que lhe traziam grande
infelicidade e emocionavam o rei, também ele um mal-aventurado. Atento ao
discurso, Duarte I, se não estava certo do despeito que animava o irmão, passou
a ter a certeza. Não lhe interrompeu os queixumes, deixou-o expor-se, já
convencido de que pretendia atingir um determinado fim, o qual, até ali, não
tivera coragem para revelar: … não haverá em toda a cristandade donzela da
mesma condição que queira comigo partilhar a vida? Há certamente. Sabeis disso
muito bem, porque sois vós quem decide o meu contrato matrimonial quando os
arranjos políticos assim o aconselharem. Até nisto sou reprimido. Impedido de
escolher quem comigo partilhe a cama, os filhos, a casa, os afectos, sou, mal
desejeis, uma carta que meu irmão senhor rei tem para jogar, sobrepondo os altos
interesses do reino aos meus sentimentos. A conversa ia longa e enojosa,
como diria Duarte I se lhe ouvíssemos os pensamentos. Para palavras rijas,
rijas palavras, terá pensado o rei, sem contudo tomar a iniciativa porque
Fernando parecia não se cansar: … quem intercedeu para que os desagravos entre
Pedro e nosso amado pai se desvanecessem? Quem serviu de aval do vosso
casamento com a infanta dona Leonor de Aragão e o de Pedro com dona Isabel de
Urgel? Quem partiu com nossa irmã desde Cascais e a acompanhou até à Flandres
para se casar com o senhor duque da Borgonha? O que sou eu então? O
avalista das vossas condutas? A representação visível das boas intenções da corte?»
In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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