terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Quem partiu com nossa irmã desde Cascais e a acompanhou até à Flandres para se casar com o senhor duque da Borgonha? O que sou eu então? O avalista das vossas condutas?»

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O infante Fernando não quer ficar
«(…) É da minha fraternal companhia que vos quereis afastar, irmão?, questionou o rei. Que tendes vós contra mim? Não, irmão, não é de vós que me quero apartar, declarou Fernando, mas do peso das vossas realizações. Como posso eu ter ambições se os meus mais próximos sempre carregam sobre mim um poder que eu não sou capaz de devolver? Que posso fazer diante da vossa inteligência, das vossas iniciativas, dos vossos poderosos aliados? Que respeito me atribuem, se sou intercessor das vossas desavenças, testemunha e acompanhante das vossas uniões matrimoniais, presenteador do nascimento dos vossos filhos, mestre-sala das reuniões cortesãs? Duarte I sentiu um abalo imenso. Considerava as palavras de Fernando injustas, via nelas um despropósito num contexto provocatório, mais uma instrumentalização de terceiros do que palavras sentidas e próprias. Pela sua parte, o infante Fernando tentava descortinar no rei um momento de fraqueza. Aos poucos, recomposto, mais pelo abatimento de Duarte I do que pela propriedade das suas palavras, o infante esforçou-se por dar veracidade a um discurso pensado por outros que não ele: aflijo-me. Até hoje não consegui impôr-me com glória no campo de batalha e, não se me deparando essa oportunidade, não tenho nenhum feito de armas que enobreça a minha Casa. É disto que vos falo. Mais do que os acrescentamentos e as mercês que me são devidos, é a honra acima de tudo que procuro, tal como vós e nossos irmãos a têm bem nutrida. A glória de vencerdes os inimigos da religião de Cristo em Ceuta trouxe-vos o merecido galardão de cavaleiro, uma honra ganha com suor e sangue, o que vos dá ainda maior dignidade para governar. Ninguém mais do que vós merecia essa homenagem, estou certo. Também não serei eu que nego o direito que Pedro e Henrique tiveram em constituir as suas Casas com cabedais suficientes para suportar as despesas e manter uma corte disciplinada e fiel. Fez bem nosso pai em conceder-lhes os ducados de Coimbra e Viseu e todas as terras ao seu redor, pois um príncipe não pode viver de esmolas alheias, como eu vivo, lá porque fui esquecido e vós pouco vos lembrastes de mim.
Imparável, Fernando continuou com as razões da sua desdita, lamentações que lhe traziam grande infelicidade e emocionavam o rei, também ele um mal-aventurado. Atento ao discurso, Duarte I, se não estava certo do despeito que animava o irmão, passou a ter a certeza. Não lhe interrompeu os queixumes, deixou-o expor-se, já convencido de que pretendia atingir um determinado fim, o qual, até ali, não tivera coragem para revelar: … não haverá em toda a cristandade donzela da mesma condição que queira comigo partilhar a vida? Há certamente. Sabeis disso muito bem, porque sois vós quem decide o meu contrato matrimonial quando os arranjos políticos assim o aconselharem. Até nisto sou reprimido. Impedido de escolher quem comigo partilhe a cama, os filhos, a casa, os afectos, sou, mal desejeis, uma carta que meu irmão senhor rei tem para jogar, sobrepondo os altos interesses do reino aos meus sentimentos. A conversa ia longa e enojosa, como diria Duarte I se lhe ouvíssemos os pensamentos. Para palavras rijas, rijas palavras, terá pensado o rei, sem contudo tomar a iniciativa porque Fernando parecia não se cansar: … quem intercedeu para que os desagravos entre Pedro e nosso amado pai se desvanecessem? Quem serviu de aval do vosso casamento com a infanta dona Leonor de Aragão e o de Pedro com dona Isabel de Urgel? Quem partiu com nossa irmã desde Cascais e a acompanhou até à Flandres para se casar com o senhor duque da Borgonha? O que sou eu então? O avalista das vossas condutas? A representação visível das boas intenções da corte?» In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT