sábado, 12 de dezembro de 2015

Inês Lourenço. Recensões. Cidália Dinis. «Em Coisas que Nunca, mais do que uma atenta observação da realidade que a rodeia, realidade que é tempo, corpo, alma; também é confrontado com curiosos retratos dos anseios e das decepções do quotidiano»

Cortesia de wikipedia

«(…) Como uma faca. Sem paradas inúteis. Vertiginosamente, em que tudo é dito de forma lapidar e cristalina:

Crónicas
Mulheres de canastra à cabeça, que num
recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.

Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.

Oscilando entre uma escrita marcada por um universo feminino, sem ser feminista, e uma apurada sensibilidade do mundo, os seus textos são o reflexo de uma voz que espicaça a moralidade caquética da sociedade pequena, do quotidiano repetitivo, de um tempo marcado pela disforia. É nesta capacidade de conferir ao discurso um outro olhar sobre as coisas, sobre as circunstâncias do mundo, que a sua poesia se de originalidade, inventando e reinventando-se:

Poema do dia seguinte
Talvez ignores ainda
que não confio no poder dos versos,
que assim como os deuses
são um mero álibi de sentidos
duvidosos.

Mas, sem poder nenhum
os prefiro, livres na sua inteira
inutilidade. Restam-nos a roupa enxuta
de improváveis viagens, e sempre
o melhor vinho da colheita
por haver.

Em Coisas que Nunca, mais do que uma atenta observação da realidade que a rodeia, realidade que é tempo, corpo, alma; o leitor é não só reconduzido pelos meandros da memória, como também é confrontado com curiosos retratos dos anseios e das decepções do quotidiano. Aqui a palavra fácil ludibria a tensão, o sonho é sufocado pelo desalento, por coisas sem ocidente:

Coisas que nunca
Coisas que nunca tivessem ocidente. Crianças
que nunca envelhecessem. Rios
que não desaguassem. Coisas
sem o engodo de crescer
em direcção à morte.

Fernando Pinto do Amaral e João Barrento, entre outros, analisando a poesia portuguesa da pós-modernidade, diagnosticaram-lhe um generalizado e difuso sentimento de melancolia. Ora, em Inês Lourenço não encontramos propriamente um fio condutor impregnado de melancolia, mas sim um turbilhão de sensações, resultantes de uma voz insubmissa, que não esconde uma genuína vontade de transgredir, de sacudir mentalidades, recorrendo para o efeito a um tom sarcástico e mordaz:

Mamografia de mármore
Deliciam-me as palavras
dos relatórios médicos, os nomes cheios
de saber oculto e míticos lugares
como a região sacro-lombar ou o tendão de
Aquiles.

Numa mamografia de rastreio
a incidência crânio-caudal seria
um bom título para uma tese teológica.

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de Nemésio, para não referir os vermelhos de
hemoptise
de Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de Cesário.

Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de mamografia de rastreio. Versos dignos
só os de mamilo róseo desde o tempo
de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só restaram óleos e
mamografias de mármore.

Pedra angular da sua obra é também o pacto que a sua poesia estabelece com a força pura da palavra, o Verbo. Ao alternar imagens exteriores com interiores, numa luta anunciada com o tempo, a palavra não é mais do que a difícil arte de não-ser, nem umas coisas nem outras.

Para uma poetisa
Penteei os meus poemas com madeixas
claras. Com elegância os lugares
e os dizeres. Só receio se, na
compostura dos meus versos, não
consegui decompor o Tempo.

Mais do que uma poética como limiar para uma reflexão sobre a transfiguração do quotidiano, a vivência que decorre do encontro com a poesia de Inês Lourenço apresenta-se como um universo labiríntico onde se realça, em antagonismo com modernices efémeras e destituídas de sentido, todas aquelas coisas que nunca deveriam perecer, mas antes constituírem-se como alimento da memória, a começar pela nossa própria infância, com todos os estímulos que lhe deram e nos dão consistência:

Berceuse
Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.

Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios (…)

Com este suave desmontar da realidade circundante, Inês Lourenço conquista o leitor e convida-o a participar das suas tentativas de restauração da ordem mental e afectiva no seu mundo compartilhado, de cuja reorganização todos podem fazer parte. Só a poesia na sua plenitude poderá ser a lâmina implacável da memória e dar cor às coisas que nunca:

Becos
Nos velhos filmes de capa e
espada, tantas vezes os jogos
mortais de esgrima confinavam
os heróis aos recantos de ruelas
sem saída.

um livro de poemas
é um antigo beco onde a mortalidade
da esgrima subsiste. Mas é sempre possível
escalar telhados escorregadios e emboscar-se
numa qualquer viela
inventada».
In Cidália Dinis, Inês Lourenço, Recensões, CEM, nº 3, Cultura, Espaço e Memória, Inês Lourenço, Coisas que Nunca, Lisboa, &ETC, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.

Cortesia de CEM/JDACT