sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Também isto Passará. Milena Busquets. «E o fardo era pesado, pesado mesmo quando me encontrava longe, mesmo quando comecei a compreender e a aceitar aquilo que se passava, mesmo quando me afastei um pouco de ti ao ver que, se não o fizesse…»

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«Por alguma estranha razão, nunca pensei que chegasse aos quarenta anos. Aos vinte, imaginava-me com trinta, vivendo com o amor da minha vida e uns quantos filhos. E aos sessenta, fazendo tartes de maçã para os meus netos, eu que nem um ovo sei estrelar, mas aprenderia. E aos oitenta, como uma velha decrépita a beber whisky com as minhas amigas. Mas nunca me imaginei com quarenta anos e tão-pouco com cinquenta. E, todavia, aqui estou. No funeral da minha mãe e, ainda por cima, com quarenta anos. Não sei muito bem como cheguei aqui nem como cheguei a esta vila, que, de repente, me dá uma vontade terrível de vomitar. E creio que nunca na minha vida me vesti tão mal. Ao chegar a casa, vou queimar a roupa toda que pus hoje, está impregnada de cansaço e tristeza, é irrecuperável. Quase todos os meus amigos vieram e alguns dos amigos dela e ainda alguns que nunca foram amigos de ninguém. Está aqui muita gente e falta gente. No fim, a doença que barbaramente a destronou e destroçou sem piedade o seu reino levou-a a lixar-nos bastante a todos e isso, naturalmente, paga-se caro na hora do funeral. Por um lado, tu, a morta, lixaste-os bastante e, por outro lado, por mim, a filha, ninguém morre de amores. A culpa é tua, mamã, claro que é. Foste depositando, pouco a pouco e sem te dares conta, toda a responsabilidade pela tua felicidade decadente sobre os meus ombros. E o fardo era pesado, pesado mesmo quando me encontrava longe, mesmo quando comecei a compreender e a aceitar aquilo que se passava, mesmo quando me afastei um pouco de ti ao ver que, se não o fizesse, não serias a única a morrer debaixo dos teus escombros. Mas creio que me amavas, não muito nem pouco, amavas-me simplesmente. Sempre pensei que aqueles que dizem amo-te muito na verdade amam-nos pouco ou talvez acrescentem o muito, que neste caso significa pouco, por timidez ou por receio da contundência do amo-te, que é a única forma verdadeira de dizer amo-te.
O muito faz com que o amo-te se transforme em algo de apropriado para todas as ocasiões, quando, na realidade, quase nunca o é. Amo-te, a palavra mágica que nos pode converter num cão, num deus, num louco, numa sombra. Além disso, muitos dos teus amigos eram de esquerda, hoje creio que já não se chamam assim ou que já não existem. Não acreditavam em Deus nem na vida após a morte. Recordo-me de quando estava na moda não acreditar em Deus. Hoje em dia, se dissermos que não acreditamos em Deus, nem em Vixnu, nem na Mãe Terra, nem na reencarnação, nem no espírito não sei de quê, nem em nada, olham-nos com uma expressão de comiseração e dizem-nos: Vê-se logo que não estás minimamente esclarecida. De forma que devem ter pensado: É melhor ficar em casa, sentado no sofá, com a garrafa de vinho, prestando-lhe a minha homenagem especial, muito mais transcendente do que a da montanha, com os estafermos dos filhos. Afinal de contas, os funerais não passam de mais uma convenção social.
Ou qualquer coisa do género. Porque suponho que te perdoaram, se é que havia algo a perdoar, e que te amaram. Eu, em pequenina, via-os rir e jogar às cartas até de madrugada e viajar e tomar banho em pelota no mar e ir jantar fora, e julgo que se divertiam, que eram felizes. O problema com as famílias que escolhemos é que desaparecem mais facilmente do que aquelas a que nos une o sangue. Os adultos com que cresci estão mortos ou em parte incerta. Aqui, sob este sol abrasador que derrete a pele e racha a terra, certamente não estão. É uma estopada, um funeral, e uma maçada as duas horas de estrada para chegar aqui. Conheço este caminho entre oliveiras, estreito e tortuoso, como as palmas das minhas mãos. É, ou foi, apesar de não passar mais de um par de meses por ano na vila, o caminho de regresso a casa e a todas as coisas que nos davam prazer. Agora já não sei o que é. Devia ter trazido um chapéu, embora também tivesse de deitá-lo no lixo mais tarde. Sinto-me enjoada. Acho que vou sentar-me ao lado deste anjo ameaçador, cujas asas lembram espadas, e nunca mais tornarei a levantar-me. A Carolina aproxima-se de mim, sempre atenta a tudo, e, pegando-me pelo braço, conduz-me até ao muro de onde se avista o mar, muito próximo, no fim de uma ladeira de oliveiras estafadas, de costas voltadas para toda a gente. Mamã, prometeste-me que quando morresses a minha vida estaria encarreirada e em ordem e que a dor seria tolerável, não me disseste que teria vontade de arrancar as minhas próprias vísceras e comê-las. E disseste-o antes de começares a mentir». In Milena Busquets, Também isto Passará, tradução de Isabel Alves, Editorial Presença, Jacarandá, Brilho das Letras, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-875-289-5.

Cortesia de BdasLetras/Jacarandá/JDACT