segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O Pássaro da Cabeça. Manuel António Pina. «Sou o pássaro que canta dentro da tua cabeça, que canta na tua garganta que canta onde lhe apeteça»

Cortesia de Wikipedia (Ilda David)

«Um poema é uma coisa sem importância»

A Ana quer
«Ana quer
nunca ter saído
da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem,
mas na barriga também
era divertido.

O coração ali à mão,
os pulmões ali ao pé,
ver como a mãe é
do lado que não se vê.

O que a Ana mais quer ser
quando for grande e crescer
é ser outra vez pequena:
não ter nada que fazer
senão ser pequena e crescer
e devez em quando nascer
e voltar a desnascer».

Era uma vez
«A Ana lê muito devagar,
só uma letra de cada vez.
Enquanto ela está a só uma letrar,
a Sara letra duas ou três.

A Ana tem tempo de lá chegar.
Os pés, os tês, os bês, os mês,
não fogem se ela se demorar.
A Sara acaba e começa outra vez.

A Ana 1ê e põe-se a pensar
nos quês, nos porquês, nos para quês,
e volta atrás para confirmar
porque, afinal de contas, talvez.

A Sara prefere entrar
nas palavras, nos desenhos, e ficar.
Existir nas histórias, em vez
de ver, viver; em vez

de pensar, de pausar, de perspicar,
ser ela a ser o que o herói fez.
Sai dos livros sem sair do lugar
e corre o mundo de lés a lés.

A Sara lê assim, a Ana mais devagar,
e depois ficam as duas a conversar.
A Ana conta: era uma vez…
E a Sara: era eu uma vez...»
Poemas de Manuel António Pina, in ‘O Pássaro da Cabeça’

In Manuel António Pina, O Pássaro da Cabeça, 1983, ilustração de Ilda David, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-072-679-7.

Cortesia de PEditora/JDACT