sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A Condessa Cercada. Isabel. Pedro Torres. «… desaparecendo pela praça fora, sob uma chuva miudinha e uma névoa espessa vinda do mar e que entretanto começara a descer sobre a vila. Para trás ficava o grupo de soldados e pajens, intrigados…»

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«(…) Era uma cerimónia que se repetia todas as noites desde que se iniciara, duas semanas antes, para estranheza das poucas almas que por acaso vinham à janela ou cruzavam a praça naquele momento. Como uma procissão silenciosa, lá vinha o grupo percorrendo as ruas furtivamente até chegar à igreja de São Bartolomeu, onde se dispersava junto à entrada. Aí, os pajens e guardas encostavam-se às portas e ficavam à conversa, aguardando que sua senhoria a condessa cumprisse as suas orações nocturnas. Fazia-o àquela hora para evitar o bulício das horas do dia na praça, assim como para escapar à vontade exacerbada de muitos habitantes em saudá-la e transmitir-lhe o pesar pela morte do filho. Se saía do castelo antes do anoitecer, era uma confusão tremenda que se gerava, e assim preferia a tranquilidade da noite, mesmo fria e chuvosa, à tremenda choradeira e algazarra que se erguia entre os populares, assim que punha o nariz fora da porta do castelo. Vasco chegara a sugerir-lhe rezar em casa no oratório, mas era ideia fixa da velha condessa, a de que seria melhor escutada na própria casa do Senhor. Além disso fazia-a sentir-se bem passar aquela pequena provação da caminhada à chuva, enrolada num manto pesado e de capuz às costas, como sinal de sacrifício e entrega para que a alma de Bernardo melhor fosse acolhida no Reino dos Céus. Mas apesar de todas as explicações e motivos, a conclusão entre os rapazes vivaços à porta, encostados uns aos outros para se aquecerem enquanto esfregavam as mãos enregeladas, era a de que, tal como o senhor conde que perdera o juízo e passava as noites às voltas no salão, não era o que diziam as mulheres na cozinha, no andar de baixo?, também dona Catarina começava a mostrar que não estava boa das ideias.
O que vale é que estão para ir embora, sussurrou um deles, de barrete enfiado até às orelhas e cara muito rosada e pintalgada de sardas. Não tardava nada até termos que começar a passear à noite o andor da igreja pela vila toda, com ela atrás! E estava o grupo tiritante a tentar abafar os risos, quando a porta se abriu de repente, pondo-os de imediato em sentido, pensando que a condessa, apesar de ter entrado não tinham passado cinco minutos, estivesse já de regresso. Para que é que estão com essas caras de defunto?, surpreendeu-os porém uma voz jovem que lhes era familiar. Julgam que a velha não sabe que é só galhofa aqui, enquanto ela reza? Até se conseguem ouvir os risinhos lá dentro...Que vergonha! Já aí vem?, perguntou o mais novo, amedrontado. Se viesse, esta não estava aqui a falar assim, disse o maior do grupo, enorme e gordo, com uma barba cerrada e nariz adunco. Então diz-nos lá, princesa, que estás aqui a fazer? Já não ficas lá dentro com a tua senhoria a rezar pelo seu filhinho? Agora que ela está para se ir embora é que te fartaste de dar em beata? Finge só mais um pouco que está quase! E enquanto soltava uma gargalhada zombeteira, os outros rapazes com a voz ainda a mudar acompanhavam-no, rindo como gaivotas excitadas.
Cuidado com essa língua, borrachão, disse-lhe porém a rapariga, lançando-lhe um olhar tão carregado de fúria que logo o ar de riso se lavou da cara do soldado, deixando-o desconcertado. Não preciso de fingir nada para lhe dizer uma palavra e meter-te no calabouço durante um mês com uma côdea de pão, sabes bem disso, não sabes? Apesar da diferença abismal de tamanhos, o soldado recuava com genuíno medo, enquanto a jovem se insinuava com ar ameaçador diante de si. Era de pequena estatura e um cabelo negro e forte, tão denso quanto as sobrancelhas espessas que encimavam os olhos grandes e cristalinos, destacados na pele de cor trigueira. Filha de mouros, fora educada pela condessa no castelo para a servir como aia. Chegara a ser baptizada e quis-se-lhe dar um nome cristão, mas desde cedo a sua rebeldia se revelou, e assim nunca permitiu, nem mesmo aos condes, que não a chamassem outra coisa senão Amina. Apesar de mourisca, tal como tantos outros em Arzila, desprezados pelos mouros de outras praças e desconsiderados pelos portugueses, que os viam como cristãos de segunda, a sua personalidade felina e a sua inteligência levaram-na a conseguir alcançar um posto de grande relevo, junto da esposa do capitão. Muito mais do que uma simples aia, Amina era uma força de influência dentro do castelo, e o seu nome era temido por todos dentro de muralhas.
Sei perfeitamente. Mas os teus dias de poder estão por um fio, moura. E depois, quero ver quem te deita a mão, e quero ver quem e que vai precisar de mais cuidado com a língua. Mas, Amina nada mais disse e apenas voltou costas ao grupo, desaparecendo pela praça fora, sob uma chuva miudinha e uma névoa espessa vinda do mar e que entretanto começara a descer sobre a vila. Para trás ficava o grupo de soldados e pajens, intrigados pela saída abrupta, da aia, que desde que a conheciam acompanhava sempre a condessa onde quer que esta fosse. Como pôde ter feito uma coisa daquelas?, pensava, caminhando decidida por entre as ruas estreitas, contornando as poças de água e lama acumuladas pelo caminho. Como pôde, depois de tantos anos de serviço, de cuidados e atenções para que nada lhe faltasse, depois de tantas horas a escutar os seus queixumes, sofrimentos e reclamações, depois de uma vida a servi-la, dispensá-la agora como o mais reles e insignificante dos lacaios? Todos aqueles rosários que desfiara noite após noite, ajoelhada a seu lado nas tábuas geladas e desconfortáveis da igreja repleta de humidade, não valiam agora de nada? Estás dispensada, hoje não preciso de ti, repetiu em pensamento, sentindo a recordação das palavras frias e impessoais com genuíno ódio, ainda mais a enfurecendo. Que golpe de traição tão reles, deixá-la ali de pé, no corredor da igreja, esperando que terminasse de ajudá-la enquanto ajoelhava o seu corpo frágil e seco, para depois a mandar embora, com um gesto mecânico da mão como de quem enxota uma mosca...» In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-660-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT