«Acredite que não foi fácil chegar
até aqui, doutora. No caminho para cá, ainda pensei desistir da decisão a que me
obriguei, voltar para trás, esquecer o conselho dos amigos e continuar na solidão
em que vivi nos últimos tempos, sem remorsos. Sei do que sofro, das razões que me
torturam e me consomem; só não tenho a certeza se alguma vez, com ajuda ou sem
ela, conseguirei ultrapassar as minhas angústias e restaurar os meus afectos. Porque
há dores impossíveis de ignorar. Não, não venho aqui na esperança de que me faça
regressar ao homem que já fui, porque nada em mim será como dantes; nem sequer
a procurei para que me aponte os caminhos da redenção, porque acho improvável.
Não sou crente, e mesmo se o fosse saberia com certeza distinguir entre milagre
e prudência. Entrego-me pois nas suas mãos, aos seus cuidados e conhecimentos,
sem saber ao certo dos benefícios que daí possam resultar. Nada lhe cobrarei pela
eventual ineficácia do tratamento que procuro. Se não resultar, o problema será
meu. Mas desde já lhe peço que não me leve a mal se um dia destes, quem sabe se
na próxima sessão, se considerar que deve haver próxima sessão, ou na seguinte,
ou noutra qualquer, lhe não aparecer à frente, seja por falta de coragem ou por
vergonha. Sobretudo por vergonha, que é tão grande que nem sei por onde começar.
Sabe, doutora, quando a decidi
procurar, tentei imediatamente articular um discurso para lho trazer, e que na altura
me pareceu coerente, com factos rigorosos e datas precisas, mas aqui, sentado à
sua frente, tenho a sensação de que já lhe perdi o fio condutor. Para ser franco,
sinto-me quase tão inseguro e perturbado como um aluno que se apresenta a exame
com a matéria decorada e, por força de um inexplicável medo do professor, não consegue
responder a uma só pergunta. Se calhar devia começar por lhe dizer quem sou, quem
fui, como cresci, donde venho, quer dizer, contar-lhe tudo cronologicamente
para que me fosse mais fácil chegar aonde quero. Enquanto falasse disso não
falaria do essencial, isto é, do que verdadeiramente me traz aqui. Mas não, acho
que essas coisas não têm qualquer interesse, pelo menos para já... Deixe-me primeiro
acender um cigarro. Posso?... Obrigado, vou já direito ao assunto.
Bom, acabei uma relação de quatro
anos. Sei que isso acontece a muita gente, todos os dias e a toda a hora, mas comigo
foi diferente, quer dizer, foi mais doloroso. Com certeza todos dizem o mesmo,
porque todos deverão pensar que o problema deles é sempre maior do que o dos outros.
Só que com o problema dos outros, para utilizar um lugar-comum, que aliás
detesto, posso bem. De qualquer modo acredito, ou pelo menos quero acreditar, que
há quem tenha passado por piores provações do que eu. Conheço até casos em que
uma das partes renunciou à vida. Seguramente, foram pessoas que chegaram ao limite
das suas capacidades de resistência face ao insucesso de uma relação a que se haviam
dado sem condições, como eu me dei. E é disso que tenho medo... Não, nunca
pensei a sério na morte, nunca me ocorreu a ideia de cometer um acto desesperado,
porque nem coragem teria para tanto, embora, verdade seja dita, muitas vezes me
apeteça desaparecer, inventar um sítio longe e partir. Se fosse crente talvez até
já tivesse pedido a Deus que me levasse.
Está
a sorrir, doutora? Sim, tem razão, desculpe o disparate, mas deixe-me então prosseguir
para não perder mais tempo nem me afastar do fundamental. Dizia eu que terminei
uma relação amorosa de quatro anos. Poder-se- á dizer que foi uma convivência
de curta duração e quando assim é, argumenta-se, as coisas acabam por se tornar
menos penosas do que se tivessem durado dez, vinte ou trinta anos. Mas olhe que
não sei se será exactamente assim. Ou melhor: sei. Tenho a certeza até de
que as relações não podem, nem devem, ser avaliadas pelo tempo que duram, mas pela
qualidade do amor e da cumplicidade que as sustentam. Há casamentos que só acabam
com a morte física de um dos cônjuges e, no entanto, por uma razão ou outra, por
culpa das duas partes ou de apenas uma, nunca se cumpriram. Na maior parte das
situações, esses casais tiveram filhos, viveram longos anos em estados de sobressalto
e amargura, mas nem assim se separaram. Ou seja: resistiram ao tumulto conjugal».
In
José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN
978-972-004-327-6.
Cortesia
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