domingo, 4 de outubro de 2015

A Terra Toda. José Manuel Saraiva. «Bom, acabei uma relação de quatro anos. Sei que isso acontece a muita gente, todos os dias e a toda a hora, mas comigo foi diferente, quer dizer, foi mais doloroso. Com certeza todos dizem o mesmo…»

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«Acredite que não foi fácil chegar até aqui, doutora. No caminho para cá, ainda pensei desistir da decisão a que me obriguei, voltar para trás, esquecer o conselho dos amigos e continuar na solidão em que vivi nos últimos tempos, sem remorsos. Sei do que sofro, das razões que me torturam e me consomem; só não tenho a certeza se alguma vez, com ajuda ou sem ela, conseguirei ultrapassar as minhas angústias e restaurar os meus afectos. Porque há dores impossíveis de ignorar. Não, não venho aqui na esperança de que me faça regressar ao homem que já fui, porque nada em mim será como dantes; nem sequer a procurei para que me aponte os caminhos da redenção, porque acho improvável. Não sou crente, e mesmo se o fosse saberia com certeza distinguir entre milagre e prudência. Entrego-me pois nas suas mãos, aos seus cuidados e conhecimentos, sem saber ao certo dos benefícios que daí possam resultar. Nada lhe cobrarei pela eventual ineficácia do tratamento que procuro. Se não resultar, o problema será meu. Mas desde já lhe peço que não me leve a mal se um dia destes, quem sabe se na próxima sessão, se considerar que deve haver próxima sessão, ou na seguinte, ou noutra qualquer, lhe não aparecer à frente, seja por falta de coragem ou por vergonha. Sobretudo por vergonha, que é tão grande que nem sei por onde começar.
Sabe, doutora, quando a decidi procurar, tentei imediatamente articular um discurso para lho trazer, e que na altura me pareceu coerente, com factos rigorosos e datas precisas, mas aqui, sentado à sua frente, tenho a sensação de que já lhe perdi o fio condutor. Para ser franco, sinto-me quase tão inseguro e perturbado como um aluno que se apresenta a exame com a matéria decorada e, por força de um inexplicável medo do professor, não consegue responder a uma só pergunta. Se calhar devia começar por lhe dizer quem sou, quem fui, como cresci, donde venho, quer dizer, contar-lhe tudo cronologicamente para que me fosse mais fácil chegar aonde quero. Enquanto falasse disso não falaria do essencial, isto é, do que verdadeiramente me traz aqui. Mas não, acho que essas coisas não têm qualquer interesse, pelo menos para já... Deixe-me primeiro acender um cigarro. Posso?... Obrigado, vou já direito ao assunto.
Bom, acabei uma relação de quatro anos. Sei que isso acontece a muita gente, todos os dias e a toda a hora, mas comigo foi diferente, quer dizer, foi mais doloroso. Com certeza todos dizem o mesmo, porque todos deverão pensar que o problema deles é sempre maior do que o dos outros. Só que com o problema dos outros, para utilizar um lugar-comum, que aliás detesto, posso bem. De qualquer modo acredito, ou pelo menos quero acreditar, que há quem tenha passado por piores provações do que eu. Conheço até casos em que uma das partes renunciou à vida. Seguramente, foram pessoas que chegaram ao limite das suas capacidades de resistência face ao insucesso de uma relação a que se haviam dado sem condições, como eu me dei. E é disso que tenho medo... Não, nunca pensei a sério na morte, nunca me ocorreu a ideia de cometer um acto desesperado, porque nem coragem teria para tanto, embora, verdade seja dita, muitas vezes me apeteça desaparecer, inventar um sítio longe e partir. Se fosse crente talvez até já tivesse pedido a Deus que me levasse.
Está a sorrir, doutora? Sim, tem razão, desculpe o disparate, mas deixe-me então prosseguir para não perder mais tempo nem me afastar do fundamental. Dizia eu que terminei uma relação amorosa de quatro anos. Poder-se- á dizer que foi uma convivência de curta duração e quando assim é, argumenta-se, as coisas acabam por se tornar menos penosas do que se tivessem durado dez, vinte ou trinta anos. Mas olhe que não sei se será exactamente assim. Ou melhor: sei. Tenho a certeza até de que as relações não podem, nem devem, ser avaliadas pelo tempo que duram, mas pela qualidade do amor e da cumplicidade que as sustentam. Há casamentos que só acabam com a morte física de um dos cônjuges e, no entanto, por uma razão ou outra, por culpa das duas partes ou de apenas uma, nunca se cumpriram. Na maior parte das situações, esses casais tiveram filhos, viveram longos anos em estados de sobressalto e amargura, mas nem assim se separaram. Ou seja: resistiram ao tumulto conjugal». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.

Cortesia de PEditora/JDACT