sábado, 3 de outubro de 2015

Portuguesas com História. Século XX. Catarina Eufémia. Anabela Natário. «No mês de Maio de 1954, Baleizão ficou parada. Os jornaleiros recusavam-se a sair para os campos, considerando demasiado baixa a jorna estabelecida pelos proprietários das terras. A discórdia cifrava-se em ‘dois escudos’…»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Primeiro, tentaram os amigos enaltecer-lhe a morte: por tiros no peito com uma criança no ventre, como se fosse preciso aumentar a gravidade do assassínio e a culpa do autor da rajada a sangue-frio. Depois, tentaram os homens do Estado Novo apagar-lhe a memória, inventando um acidente entre militares armados e mulheres de mãos vazias. O facto é que Catarina Eufémia de Baleizão foi assassinada no dia 19 de Maio de 1954, na aldeia vermelha do Alentejo que deu o apelido à sua família paterna. Catarina, a camponesa que, para políticos e poetas, se tornou um símbolo da luta contra a ditadura, foi morta por um tenente da Guarda Nacional Republicana. Morta por dois escudos, o preço de um pão de quilo. Dada a tendência para a revolta, os baleizoeiros já haviam sofrido na pele os abusos da velha Guarda Municipal do tempo do rei Pedro IV, rebaptizada de Guarda Republicana quando a Monarquia caiu, a 5 de Outubro de 1910, e designada GNR no ano seguinte. Catarina e os conterrâneos conheciam de sobra as práticas desta espécie de braço armado do regime, encarregado de estabelecer a ordem, mesmo na ausência de qualquer desordem: já um dos seus fora torturado e morto, já tinham querido fazer-lhes engolir um suicídio por um assassínio às mãos de torturadores, até já haviam sido espancados por não tirarem o chapéu a um comandante de posto que gostava de ser cumprimentado na rua de modo respeitoso...
No dia da sua morte ainda permanecia na memória dos mais velhos o assassínio de outra baleizoeira . Fazia trinta e sete anos que, aproveitando-se da escassez de alimentos provocada pela I Guerra Mundial, os endinheirados açambarcavam farinha para lhe fazerem subir o preço. E o povo revoltou-se. Palmira Graça, de trinta e cinco anos, foi morta a tiro, e duas mulheres e um homem ficaram feridos nessa noite de 19 de Junho de 1917,quando o povo de Baleizão enfrentou a autoridade. A Guarda fora chamada para impedir que alguém entrasse no armazém da estação de caminho-de-ferro e levasse os sacos de cereais comprados ao desbarato. Palmira morreu, mas não em vão: os revoltosos passaram a comprar farinha sem intermediários.
No mês de Maio de 1954, Baleizão ficou parada. Os jornaleiros recusavam-se a sair para os campos, considerando demasiado baixa a jorna estabelecida pelos proprietários das terras. A discórdia cifrava-se em dois escudos, mais ou menos dois dias da dose de pão de uma pessoa, pois o pão, comido seco, com azeite ou em açorda, consistia por vezes no único alimento de uma família: os que nada tinham só comiam se o conseguissem comprar, os remediados faziam-no em casa, coziam-no de oito em oito dias, a uma média de quatro quilos por cabeça; amassavam-no à noite, pela manhã estava pronto. Catarina amassava e punha o pão a cozer depois de chegar do trabalho rural. O dinheiro que o marido ganhava como cantoneiro não chegava.
Tinham três filhos; além de tratar deles e das tarefas domésticas, a ela só lhe restava o campo para ganhar alguns tostões. E tentava acompanhar o ciclo, começando em Janeiro e indo até Maio na monda do trigo, entrando de seguida na ceifa da fava, talvez na da cevada e da aveia, indo até Julho, quando começava a ceifa do trigo. De Outubro a Dezembro era a apanha da azeitona. Mas Catarina nem sempre conseguia trabalho: nas saídas em grupo privilegiava-se a família, portanto os angariadores levavam primeiro os seus e só depois outra vizinhança. Nestes anos 50 do século XX, vivia-se muito mal. Portugal era um país pobre, pouco desenvolvido. Orgulhosamente sós, era uma das frases preferidas do ditador e (sem escrúpulos) António Oliveira Salazar, que governou com mão-de-ferro, desde 1933 até 1968, todo o território nacional daquém e dalém-mar. Dava a ditadura os primeiros passos quando Catarina nasceu, no dia 13 de Fevereiro de 1928, embora na sua certidão conste a data de 18 de Abril. Talvez o pai se tenha atrasado e assim haja evitado pagar a multa pelo registo fora do prazo. Tratava-se de uma prática habitual: uma dezena de anos antes, o pai de Lúcia Santos, a chamada Vidente de Fátima, terá feito o mesmo. E é apenas um exemplo». In Anabela Natário, Portuguesas com História, Século XX, Catarina Eufémia, Círculo de Leitores, 2008, ISBN 978-972-424-207-1.

Cortesia de Círculo de Leitores/JDACT