Recordação
«Desde muito pequeno lhe acompanhei
os passos na existência, que o destino mandou fosse curta mas plena, e reveladora
do que ele valia. Criança, adolescente, e homem: estas imagens sucessivas e sobrepostas,
que evoco com pungente saudade, avivam-se em mim na dolorosa recordação desse magnífico
rapaz que não se limitou a ser exemplar na vida transitória e efémera, mas que a
morte escolheu para dar testemunho de si às gerações que hão-de seguir. Herdara,
com o sangue e tradição daqueles donde provinha, o sentido do dever: dever para
com os seus, traduzido no afecto que lhes votava; dever para com a sociedade, ilustrando
o seu nome ao longo duma brilhante carreira universitária; dever para com a Pátria,
oferecendo-lhe com entusiasmo a sua própria vida. Por desígnio dos fados e
vontade própria, nele se misturavam, o que não é frequente, em balanço equilibrado,
inteligência e acção. E não era apenas o conhecimento aprofundado dos seus
estudos escolares que o ocupava: a sua curiosidade estava sempre largamente
aberta a todas as coisas do espírito, e não só àquelas que a tradição tinha cristalizado,
mas igualmente às novas audácias e aventuras do entendimento. Ainda recordo a impressão
que me fez, numa das minhas vindas a Lisboa, o ouvi-lo falar, com firmeza e à-vontade,
da pintura abstracta, então no seu auge, e da literatura moderna, tão carregada
de tintas filosóficas, que começa a ser difícil definir-lhe as fronteiras com a
arte. De tudo isso falámos: ele com entusiasmo, eu com o espanto que sempre causa
o ver aqueles que conhecemos nas primeiras letras, transformados em gente
grande e nossos iguais na apreciação dos homens e das coisas. Porém esta abertura
de espírito e ilimitada curiosidade, não era expressão, como tantas vezes acontece,
dum mole e confortável cepticismo que viaja através das múltiplas concepções e ideias
por puro divertimento intelectual, sem se fixar ou definir. E aí é que aparece o
homem de acção, que necessita de fazer escolha e de encontrar certezas. E ele tinha
essas certezas; caminhava esclarecido por um ideal, em que se misturava a herança
sempre renovada do que foi e a esperança do que há-de ser. É esse o segredo e a
explicação dum sacrifício, que as suas virtudes exaltaram na hora derradeira. A
inteligência e a acção não viviam em compartimentos separados: a sua breve existência e o seu exemplo
mostraram bem que o destino, até o fim, as forjara e fundira num todo único; uma
vincada personalidade, que todos nós, os seus amigos, evocamos com ternura e devoção;
e a dor de ver partir tão cedo e tão inesperadamente a sua gentil e prometedora
mocidade da terra dos homens, que, embora em tão curto trânsito, o José
Almeida ainda teve tempo de enriquecer com o fecundo exemplo da sua vida. Neste
mundo de lágrimas, ligeiramente entrecortado de pequenas alegrias, ele cumpriu:
viveu pouco, mas foi fiel aos que o precederam, porque os honrou e os seguiu». In
Abílio Pinto Lemos, Roma, Junho de 1967, José Carlos Godinho Ferreira Almeida,
In Memoriam, Vários Autores, Neogravura1968.
Cortesia
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