sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O Sonho do Celta Mario Vargas Llosa. «Ao entrar no estreito parlatório das visitas. Afligiu-se. Quem o esperava ali não era o seu advogado, maître George Duffy, mas sim um dos seus ajudantes, um jovem louro e desengonçado, de maçãs do rosto salientes»

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O Congo
«Quando abriram a porta da cela, com o jorro de luz e um golpe de vento entrou também o barulho da rua que as paredes de pedra abafavam e Roger acordou, assustado. Pestanejando, ainda confuso, esforçando-se por se acalmar, vislumbrou, recostada no vão da porta, a silhueta do xerife. A sua cara flácida, de louros bigodes e olhinhos maldizentes, contemplava-o com a antipatia que nunca tinha tentado disfarçar. Eis aqui alguém que sofreria se o Governo inglês lhe concedesse o pedido de clemência. Visita, murmurou o xerife, sem tirar os olhos de cima dele. Pôs-se de pé, esfregando os braços. Quanto teria dormido? Um dos suplícios da prisão de Pentonville era não se saber as horas. No cárcere de Brixton e na Torre de Londres ouvia as badaladas que marcavam as meias horas e as horas; aqui, as espessas paredes não deixavam chegar ao interior da prisão o alvoroço dos sinos das igrejas de Caledonian Road nem o bulício do mercado de Islington e os guardas perfilados na porta cumpriam estritamente a ordem de não lhe dirigir a palavra. O xerife pôs-lhe as algemas e indicou-lhe que saísse à sua frente. Traria o seu advogado alguma boa notícia? O gabinete ter-se-ia reunido e tomado uma decisão? Talvez o olhar do xerife, mais carregado do que nunca com a aversão que ele lhe inspirava, se devesse a terem-lhe comutado a pena. Ia a caminhar pelo longo corredor de tijolos vermelhos enegrecidos pela sujidade, entre as portas metálicas das celas e umas paredes descoloridas nas quais a cada vinte ou vinte e cinco passos havia uma alta janela com grades através da qual conseguia avistar um bocadinho de céu acinzentado. Porque é que tinha tanto frio? Era Julho, o coração do Verão, não havia razão para aquele gelo que lhe eriçava a pele.
Ao entrar no estreito parlatório das visitas. Afligiu-se. Quem o esperava ali não era o seu advogado, maître George Duffy, mas sim um dos seus ajudantes, um jovem louro e desengonçado, de maçãs do rosto salientes, vestido como um peralvilho, a quem ele tinha visto durante os quatro dias do julgamento a levar e a trazer papéis aos advogados de defesa. Porque é que o maître Duffy, em vez de vir em pessoa, mandava um dos seus estagiários? O jovem atirou-lhe um olhar frio. Nas suas pupilas havia irritação e repugnância. O que ó que aquele imbecil estaria a pensar? Olha para mim como se eu fosse uma besta, pensou Roger. Alguma novidade? O jovem negou com a cabeça. Inspirou antes de falar: Sobre o pedido de indulto, ainda não, murmurou, com secura, fazendo um esgar que ainda o desengonçava mais. É preciso esperar que o Conselho de Ministros se reúna.
A Roger incomodava-o a presença do xerife e do outro guarda no pequeno parlatório. Embora permanecessem silenciosos e imóveis, sabia que estavam suspensos de tudo o que diziam. Essa ideia oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe a respiração. Mas, tendo em conta os últimos acontecimentos, acrescentou o jovem louro, pestanejando pela primeira vez e abrindo e fechando a boca com exagero, tudo se tornou agora mais difícil. À prisão de Pentonville não chegam as notícias do exterior. O que é que aconteceu? E se o Almirantado alemão tivesse decidido por fim atacar a Grã-Bretanha a partir das costas da Irlanda? E se a sonhada invasão estivesse a acontecer e os canhões do Kaiser vingassem naqueles mesmos instantes os patriotas irlandeses fuzilados pelos ingleses na Revolta da Páscoa? Se a guerra tivesse tomado aquele rumo, os seus planos realizavam-se apesar de tudo». In Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta, 2010, tradução de Cristina Rodriguez, Quetzal Editores, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-564-919-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT