quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal. O Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «… e amado sobrinho, para ver as ilustres infantas, suas irmãs, com uma das quais tem grande desejo de tratar matrimónio»

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Uma carta escrita pela minha mão
«(…) Os palácios régios lisboetas também não se livrariam deste flagelo de todas as cortes que eram os rumores, com a diferença de que os que circulavam na margem do Tejo, no início de 1448, continuavam a ter como alvo o Regente. Tratava-se de envenenar as suas relações com o rei adolescente para provocar a ruptura definitiva entre ambos. Os mesmos nobres que um dia tinham estado a favor da rainha dona Leonor, acabando depois por aceitar o poder do infante Pedro, conspiravam agora para que o rei se desentendesse com o seu tio. Assim, quatro meses depois de ter feito nove anos, a infanta dona Joana testemunhou o seu primeiro golpe palaciano em terras lusas. Segundo as crónicas, em meados de Julho de 1448, em Santarém, Afonso V tomou sua casa e sua mulher (...) com as habituais bênçaos, cerimónias e festejos, ainda que não tan grandiosos quanto o gostaria o infante Pedro. Houve apenas alguma mostrança de festas. Depois de escrever ao seu sobrinho uma carta na qual lhe entregava formalmente o poder, o cada vez mais preocupado pai da nova rainha de Portugal mudou-se para as suas terras de Coimbra. E assim pareceu acabar tudo. No entanto, pouco depois, começaram a ocorrer alvoroços em algumas cidades do reino. Ao mesmo tempo, o rei não deixava de manifestar publicamente a sua preocupação com as injustiças sofridas por aqueles que tinham apoiado a sua mãe, e que, por causa do tio, se tinham visto forçados ao exílio e à perda dos seus bens.
É possível que o interesse prestado pela infanta dona Joana a essas intrigas palacianas, que terão sem dúvida contado com a participação de servidores muito próximos dela, pelo menos durante o seu exílio castelhano, fosse muito menor que o dedicado a um acontecimento que certamente atrairia, pouco tempo depois, a sua atenção, assim como a da sua irmã, a infanta dona Leonor. E tudo isso devido à chegada à corte de Lisboa de uma carta dirigida aos reis de Portugal, da parte da rainha dona María de Aragão, antiga protectora de dona Joana, enviada em meados de Outubro de 1448. Uma missiva na qual a rainha aragonesa recomendava ao casal real português as pessoas do barão Jorge von Volrestorff e Ulderico Riedrer, embaixadores do ilustríssimo príncipe Federico, rei de romanos. Tratava-se de distintos diplomatas alemães que tinham estado antes em Nápoles, com Alfonso V de Aragão, com o fim conseguir a apresentação de o Magnânimo perante o nosso muito caro e amado sobrinho, para ver as ilustres infantas, suas irmãs, com uma das quais tem grande desejo de tratar matrimónio. É possível que esta ideia tivesse surgido entre os que rodeavam o papa Nicolau V, apesar de tanto os portugueses como os aragoneses terem logo atribuído a si próprios a iniciativa. Na realidade, o pontífice assinara pouco antes uma concordata com o Império e desejava assegurar também a lealdade do reino de Nápoles, em teoria vassalo da Santa Sé. Pelo que oferecera a Alfonso V de Aragão a possibilidade de casar uma das suas sobrinhas portuguesas com o jovem imperador da casa de Habsburgo.
No fim de contas, esta antiga linhagem, originária das montanhas da actual Suíça, dera um verdadeiro salto qualitativo no século XIII, quando a outro pontífice ocorrera favorecer a escolha de um dos membros da dita família como imperador de Alemanha. Supostamente, aquela família seria mais fácil de controlar, e o membro escolhido poderia ser usado contra a muito mais prestigiosa e poderosa casa imperial de Hohenstaufen. Na sua carta, a rainha de Aragão explicava ao sobrinho Afonso V que, com o séquito dos embaixadores alemães viajavam também três senhoras nobres austríacas, cuja tarefa consistia provavelmente em realizar determinadas pesquisas discretas sobre aspectos relacionados com a virtude, das três infantas candidatas.
Naquela época o êxito de um matrimónio dinástico baseava-se quase exclusivamente em duas tradicionais premissas femininas: a fertilidade e a castidade da futura rainha consorte. Nas monarquias hereditárias do antigo regime, à rainha é exigido um respeito rigoroso das normas morais, especialmente no que se refere à fidelidade matrimonial, e não só pela sua posição social, mas também porque a legitimidade da dinastia descansava na sua própria honestidade (...), a feminilidade e a exaltação moral da soberana, até ao ponto de se converter na figura paradigmática da qual dependia a ordem moral e social.
Segundo a historiografia portuguesa, a primeira tentativa de chegar a um acordo sobre o matrimónio de uma das infantas portuguesas com o imperador alemão não resultou, devido ao boicote do seu parente próximo, o duque de Borgonha. Este fracasso voltou a concentrar a atenção da corte sobre o duque de Coimbra, que nessa altura chegou a indicar numa carta que entre os que procuravam acabar com ele não se encontrava o rei que contra mim nom tem culpa algua, mas sim os partidários ainda ressentidos com a antiga rainha. Muito hábeis, segundo o tio de dona Joana, a utilizar suas falsas palavras». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da EdosLivros/JDACT