«Em Ouguela, lugar de Além-Tejo, entre Elvas e Campo Maior, há uma
fonte cuja água não coze carne, nem peixe por mais que ferva. E na vila de
Pombal, perto de Leiria, há um forno em que todos os anos se coze uma grande
fogaça para a festa do Espírito Santo; e entra um homem nele, quando mais
quente, para acomodar a fogaça e se detém dentro quanto tempo é necessário, sem
padecer lesão alguma do fogo que, cozendo o pão, não coze o homem. E, pelo contrário,
na tapada de Vila Viçosa, retiro agradável da grande casa de Bragança, adverti
uma coisa notável: que haverá mais de dois mil veados nela, que todos os anos
mudam as pontas, bastante número para, em pouco tempo, ficar toda a tapada juncada
delas; e no cabo não há quem ache uma. Perguntei a razão ao senhor infante Alexandre,
irmão de el-rei nosso senhor, grande perscrutador de coisas naturais; e me
respondeu, o que é certo, que os mesmos veados em as arrancando logo as comem.
Mais me admirou que haja animais que comam e possam digerir ossos mais duros
que pedras! Mas que muito, se há aves que comem e digerem ferro, quais são as
emas!
Conforme a estes exemplos, também nos homens há estômagos que não cozem
muitos manjares, como a fonte de Ouguela, o forno de Pombal, nem os admitem,
por bons que sejam, e abraçam outros mais grosseiros, com que se fazem como
veados e emas. E se perguntarmos ao filósofo a razão destas desigualdades?
Dirá que são efeitos e monstruosidades da natureza, que obra conforme as
compleições e qualidades dos sujeitos. O mesmo digo, se houver estômagos
que não admitam e cozam bem os pontos e matérias que discursa este Tratado,
que não vem o mal da qualidade das coisas que aqui ofereço, senão do mau humor
com que as mastigam, mais para as morder que para as digerir. E como o
mantimento que se não digere, o estômago o converte em veneno, assim os tais de
tudo fazem peçonha, mas que seja teriaga cordial e antídoto escolhido. Como
teríaga e como antídoto, proponho tudo para remédio dos males que padece a
nossa República.
Se houver aranhas que façam peçonha mortal das flores aromáticas, de
que as abelhas tirem mel suave, não é a culpa das flores, que todas são medicinais;
o mal vem das aranhas, que pervertem o que é bom. É o juízo humano,
assim como os moldes ou sinetes, que imprimem em cera e massa suas figuras: se
o molde as tem de serpentes, toda a massa, por sã que seja, fica coberta de
sevandijas, como se as produzira e estivera corrupta; e, pelo contrário, se o
sinete é de figuras boas e perfeitas, tais as imprime, até na cera mais tosca. Quero
dizer, amigo leitor, que se fordes inimigo da verdade, sempre vos há-de amargar
e nunca haveis de dizer bem dela, com ela ser de seu natural muito doce e
formosa, porque é filha de Deus. Verdades puras professo dizer, não para vos
ofender com elas, senão para vos mostrar onde e como vos ofendeis vós a vós mesmo
e à vossa República, para que vos melhoreis, se vos achardes compreendido.
E não me digais que não convém tirar a público afrontas públicas de
toda uma nação, porque a isso se responde que, se são públicas, nenhum descrédito
move quem as repete, antes vos honra mostrando-vos disposto para a emenda, e
vos melhora abrindo-vos caminho para conhecerdes o engano em que viveis. E
assim protesto que não é meu intento ensinar-vos os lances que nesta “Arte de Furtar” ignoráveis, senão
alumiar-vos o conhecimento da deformidade deles, para que os abomineis. Nem
cuideis que vos conheço, quem quer que sois, nem que ponho o dedo em vossas
coisas em particular. [...]» In Manuel da Costa, Arte de Furtar, 1ª edição de
1743 ou 1744, Lisboa, Editorial Estampa, 2001, Fundação Calouste Gulbenkian.
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