Fotos de Raul Ladeira
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«Ainda assim, as camas em sentido
não faziam crueldade. Era pior, quando os lençóis, polvilhados de açúcar
branco, dito pilé à portuguesa, pela leitura do rótulo, que era em Francês, iam
arranhando por todo o resto da noite, a comichão a subir pelos pijamas.
De manhã, os marçanos e empregados, apressados à justa do abrir a loja,
perdiam o tempo do pequeno-almoço a descoser as mangas dos casacos alinhavados
de véspera. Doutras vezes, deixava-lhes ao fundo dos lençóis tripas de enchido
com água que, por mal apertadas, desconsolavam a cama. E a um ou outro que usasse
gostar de vinho enganava-os com a água das azeitonas.
Mas ela nunca mais se foi embora. Morreu em nossa casa, onde por
excelência sempre foi (menina Carmem) um privilégio activo dos trinta e alguns
anos que ali ficou connosco. Raramente se deixava levar à sua terra de origem,
a mesma dos meus pais. Ninguém temia a menina Carmem, salvo os empregados no Entrudo,
ela nunca dizia Carnaval. As partidas da tia Carmem gozavam do mérito primitivo
da inocência. Era dada a rituais e varias superstições, como saber benzer do ‘Quebranto’
e fazer-nos sentar na cama, se algum de nós estava doente, quando em São Lourenço
dobravam sinos ou passava um funeral. Em casos desta espécie, argumentava: - Porque
não é bom! Dizia-o canonicamente.
Os sinos dobram na Cidade Branca
Os sinos de mais dobrar!
Dobrar dos sinos na Cidade Branca,
alguém do campo que lá foi morar.
São sinos de São Lourenço!
os sinos de mais morrer.
Os sinos dobram na Cidade Branca,
gente de fora que lá foi viver.
Dobram os sinos na Cidade Branca.
Os sinos que dão mais dó!
Dobrar dos sinos na Cidade Branca,
era um velhote que vivia só.
São sinos de São Lourenço!
Os sinos da maior dor.
Os sinos dobram na Cidade Branca,
na Casa de Saúde, um lavrador.
Dobram os sinos na Cidade Branca.
Os sinos do maior dano!
Não dobram sinos na Cidade Branca,
nem leva padre à frente, era um cigano.
São sinos de São Lourenço!
Os sinos de mais de um tom.
Não dobram sinos na Cidade Branca,
foi ontem, suicidou-se, era tão bom!
Ai sinos de São Lourenço!
Não dobram por mais engano.
Lá vai levado da Cidade Branca
um homem que morreu republicano.
Mais tristes sinos da Cidade Branca.
Os sinos do derradeiro.
Caixão de linho virgem, é um anjinho,
filha tão nova, um rapaz bombeiro.
Ensinava-nos lengalengas e enredos abreviados, alguns deles de
incitação ao agoiro, tanto para o mal como para o bem, um indistinto literal de
crenças. Desses contos, o mais estranho para mim era o do ‘Gatinho Amarelo’,
que agora me parece apocalíptico, ainda que também surrealista, conhecida que
seja uma carriça, pássaro frágil e pequenito. Mas o desfecho do conto, em rimas
que até nem são muito pobres, atenuava-o a tia Carmem, a ciciar a palavra
apoteótica no diminutivo, disfarçado num trejeito concessivo, arredondado, por
ser brejeiro.
A Carriça deu um berro!
- Toda a gente se espantou.
Só uma velhinha ficou,
embrulhada num chinelo.
Teve um gatinho amarelo.
Foi levá-lo ao juiz.
Mas o juiz não o quis,
- deu-lhe um pei.. no nariz.
Preciso desde já de começar a falar da loja.
Vou defini-la, para clareza do meu espírito dela. Por consciência minha
da loja que me educou, e das outras como ela, que eu conheci, provinciais. Sob
qualidade, porém, duma cidade baça». In Garcia de Castro, Loja, Contra-loja e
Armazém, Tribuna Livre, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-162-6.
Cortesia de E. Colibri/JDACT