«Carreguem-lhe o custo de todo o género, reduzam-lhe a porção
de todo o alimento, espremam-lhe tudo e espremam-no a ele mesmo. Amachuquem-no à
condição extrema em que, não podendo já o corpo receber, por já não lho darem,
aquilo que, ido cá de fora, vai ampará-lo lá por dentro, começa então a
produzir-se o chamado fenómeno da autofagia que outra coisa não é senão pôr-se o
sujeito a mastigar-se a si mesmo e a palitar-se em imaginação!
Tudo o que quiserem, menos
uma coisa: não lhe hão-de tocar na filarmónica! Quer dizer, lá poder tocar,
podem ; mas hão-de tocar cornetim, clarinete, trombone, flauta, aquilo que mais
for preciso ou para que mais mostrarem melhor embocadura. Até tambor, ou
pratos, que não é nenhum desprezo.
A filarmónica é o seu
fraco. A filarmónica é o seu forte. O seu grande vicio se quiserem, mas quer o
queiram, quer não, uma das suas grandes virtudes. A mais intensa, mais viva,
mais vibrante expressão da alegria portuguesa é a filarmónica. A estudantina, a
tuna, o sol-e-dó são tudo pieguices, sem cor e sem animação, que só servem para
reuniões particulares, récitas de amadores e sociedades dançantes, onde a gente
se aborrece.
Ninguém peça ao
instrumento de corda aquilo que ele não pode dar. Serão a viola, a guitarra, o
bandolim, o cavaquinho muito bons para o fado, para a seguidilha, para a ‘reverie’,
para a serenata, para a olheira e para o namoro, para a tisica e para o rapto, mas
não são bons para mais nada. Tirem à guitarra, por exemplo, o pano de fundo de um
choupal do Mondego esbranquiçado de luar, ou o reprego de uma viela da Mouraria
por sombras de noite alta, e era uma vez uma guitarra!
Ao passo que o instrumento
de sopro e o instrumento de pancada servem para tudo, para a festa rija como para
a festa amena, para o ‘salsifré’ como para o arraial, para a alvorada como para
o fogo preso, para a sinfonia como para o final da ópera, para o passo-dobrado como
para a marcha heróica, para a ‘Maria da Fonte’ como para a ‘Maria Caxuxa’, para
o ‘Hino da Carta’ como para o ‘Noivado do Sepulcro’.
O instrumento de corda não
passa de um devaneio, uma paixão em surdina, um mal do peito, ou simplesmente um
defluxo. O instrumento de sopro implica já uma óptima função de saúde; e o
instrumento de pancada é, concomitantemente, uma necessidade musical e um derivativo
fisiológico; o bombo é sempre um irritado; o tambor é sempre um frenético.
Ponha-se a banza ao lado
do cornetim e veja-se a diferença: a banza é molenga, dengosa; o cornetim esperto,
vermelho, empertigado. Está a banza a tocar mesmo aqui ao pé, e é preciso, para
bem a ouvir, aproximar mais o ouvido. Chega-se um sopro ao bocal do cornetim e logo
ele desprende uma enfiada de notas claras e brilhantes como um canto de galo num
júbilo de alvorada!
A filarmónica é, na vida portuguesa, um elemento constantemente activo de
vitalidade e rejuvenescimento. O português, que não tem afinado o sentimento da
música como o tem, por exemplo, e mais que nenhum outro, o italiano, associa sempre
a música a todas as suas grandes alegrias como a todas as suas grandes
desgraças. A mãe que toda se desvanece de contentamento sobre o berço em que embala
o filho rubicundo de saúde, adormece-o com música; a estéril mulher do fado, debruçada
sobre a meia porta do seu antro de miséria, vai pondo em música e canta a quem
passa a lástima da sua desonra. Mas a música instrumentada para a filarmónica, e
executada pela fiarmónica, é que lhe enche, verdadeiramente, as medidas». In
Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria de António Maria Pereira, Livraria
Editora, Lisboa, 1910, Library University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.
Cortesia de University of Toronto/JDACT