«Ele, Afonso, nesta história era lobo e era touro, atacara com as armas
que tinha à mão. Mestre Tadeu, que à altura tinha uns quarenta anos, quando em
49 morreu o Infante Pedro, contou-me muitas vezes a história. Ele já residia
dantes por Lisboa numas casas velhas por detrás do horto do terreno onde se
construiu mais tarde o Hospital de Todos-os-Santos, embora possuísse a sua
velha casa na judiaria. É um erro alguém pensar que ao Infante Pedro acariciava
a ideia de um governo central fraco, de um poder real fraco, para assim poder
governar à vontade. Mesmo que o poder tenha sido um dos seus sonhos, se não o maior,
tal afirmação é uma redonda mentira. E a história subsequente comprovou-o bem,
com a bacanal de imbecilidade que foi a governação do rei Afonso que distribuiu
literalmente o reino em bocados à sua volta para comprazer a nobreza, as
grandes casas da velha aristocracia (e a da nova, como os Barcelos e os Braganças)
e todos os ambiciosos da sua época.
D. Leonor enviara parte do seu dote em dinheiro e as jóias para a irmã
Maria, em Castela. No Crato esperava que os Infantes de Aragão a viessem
vingar. O infante Pedro que, por sua mulher, era herdeiro de Aragão com seus
filhos, deve ter visto neste tresloucado acto da cunhada mais que uma traição,
uma provocação tremenda. O pobre prior do Crato, por de mais senil e sem saber
onde se meter, mas conhecendo a sagacidade do Infante, manda-lhe um filho
prestar juramento de fidelidade e depois prepara-se para recambiar a rainha para
Castela, para a fronteira. No Crato, a rede de servidores do Infante seguira a
infeliz Leonor de Transtâmara e esses servidores secretos do Infante
mantinham-no a par de todos os actos da cunhada. Pedro, de momento, tinha o jogo
ganho porque quando o velho Afonso de Barcelos perdera em Cortes, por votos, o
cerceamento de poderes a conceder ao Regente, este permitir-se-ia sempre actuar
como rei.
E actuou. Por isso, o irmão bastardo optou pela rebelião declarada ou
semideclarada.
O infante Pedro organizou a defesa do Reino: a comarca da Beira sob o
comando do infante Henrique; entre Tejo e Guadiana, ao infante João; a cidade do
Porto a seu homem de confiança Aires Gomes da Silva. Amieira será cercada pelo
seu irmão de armas, mais velho, de larga experiência, homem honrado, grande
fidalgo que estivera em Azincourt e servira o rei de Inglaterra na Guerra dos
Cem Anos, Álvaro Vaz de Almada; Belver a Lopo de Almeida e o conde de Ourém,
com as forças de Lisboa, no Crato.
A rainha partiu para Castela. A rainha de Portugal abandonava o Reino,
os filhos, tudo. O rei Duarte I, no túmulo, se possível fosse, teria dado
voltas sobre voltas, como as daria ao saber do apoio do próprio irmão a Álvaro de
Luna, inimigo figadal de D. Leonor em Castela.
- Senhor, a rainha partiu, disse
um dos seus servidores em Santarém ao regente Pedro que montara um impecável
serviço de correios.
- Foi para Castela. Abandonou
tudo. Ela quer a guerra. Pedro guardou segredo. Não avisou os irmãos que, mais
tarde, ainda tentaram uma aproximação, uma forma de mediação diplomática, mas o
regente Pedro sabia o que queria e D. Leonor estava a mais. Apenas isso.
Os irmãos da rainha, em Castela, tão perto, deviam provocar-lhe pesadelos,
mas as pedras do jogo do poder, que é sempre implacável, estavam lançadas. O
homem que recusaria lhe erguessem uma estátua em Lisboa, pelos seus serviços ao
reino, sabia que tudo era relativo e o poder, mesmo quando em mente se tem o
esquema da união ibérica em si, nos filhos e no sobrinho rei, é mais que tudo,
quantas vezes um jogo efémero, traiçoeiro e implacável.
- Se a minha imagem ali
estivesse esculpida, ainda viriam dias em que vossos filhos a derribariam e com
as pedras lhe quebrariam os olhos». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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