sábado, 22 de setembro de 2012

Os Cavaleiros de Carneiro e a Herança da Cavalaria vilã na Estremadura. Os casos de Arruda e de Alcanede. Luís Filipe Oliveira. «Como sugeriu J. Mattoso, 1985, é possível que se tivesse exigido foro de almocreve a quem deitava os cavalos a ganho, já que essa era uma prática considerada legítima pelo concelho, embora o monarca viesse a condená-la»


Ilustração de carloscarneiro
jdact

«Nas suas vilas de origem, os cavaleiros guardavam intacta a honra e a isenção fiscal, mas a sua cavalaria dizia-se agora de carneiro, de tarraço, ou de costume, vendo-se qualificada com termos um pouco enigmáticos e degradantes, talvez porque se perdera o costume de entregar um carneiro em substituição do fossado, como em tempos acontecia nalgumas vilas castelhanas dos séculos XI e XII. De qualquer modo, essas designações pouco prestigiantes da sua cavalaria não deixavam de reflectir, afinal, a degradação do seu estatuto pessoal, para lá dos limites da vila onde viviam e moravam.
A sobrevivência destes cavaleiros até finais da Idade Média mostra que nem toda a cavalaria vilã se diluiu no sistema dos aquantiados, ao contrário do que defendeu Gama Barros. Nalgumas vilas da Estremadura, pelo menos, os antigos cavaleiros vilãos souberam manter muito daquilo que os distinguia dos peões e os afirmava como cavaleiros no espaço dos concelhos respectivos. Como se viu, essa resistência não se fez sem algumas concessões, nem sem alguma degradação de estatuto, mas não é fácil explicar, com os dados disponíveis, o que determinou o sucesso destas comunidades na defesa dos seus costumes, enquanto outras se rendiam ao sistema das quantias e aos critérios de hierarquização social que daí decorriam. Ainda que a história dessa resistência esteja em boa parte por fazer, é provável que ela tenha sido favorecida pela integração dessas comunidades em concelhos de senhorio particular, onde a acção da Coroa se fazia sentir, por certo, com maior dificuldade. De resto, não é de todo impossível que a sua luta tenha contado com a conivência, ou com o silêncio, pelo menos, dos alcaides nomeados pelos senhorios, os quais tinham algo a perder com a generalização do sistema das quantias. Além de abdicarem das ofertas regulares de alguns frangões, ou de uns quantos tarraços de vinho, também prescindiriam do seu anterior protagonismo na recepção dos novos cavaleiros, que lhes dava um ascendente decisivo sobre a milícia do concelho.
A interferência da Coroa no recrutamento dos cavaleiros dos concelhos, de modo a controlar o processo e a restringir a isenção fiscal aos que tivessem cavalo e armas para o serviço do rei, é muito anterior às disposições de Afonso IV, que ficaram citadas na carta que derrogou os privilégios dos cavaleiros de carneiro em Alcanede. Na realidade, desde Maio de 1305 que o rei Dinis I tinha reservado para a Coroa o direito de conferir a honra de cavalaria aos vizinhos das cidades e de os privilegiar, por essa via, com a isenção de direitos régios e concelhios. Contra essa novidade protestou o concelho de Lisboa, em Setembro desse mesmo and, lembrando que cabia ao alcaide o costume de fazer os cavaleiros da cidade durante o mês de Maio, os quais eram aceites como tais pelos monarcas anteriores. Não teve, contudo, grande sucesso. Por volta de 1317, já o monarca tinha chamado a si a condução de todo o processo, estabelecendo o novo sistema de quantias, “mandey que tevesedes cavalos aqueles que as contias avyades segundo era conteudo nas cartas que vos sobre esto mandey”, como recordou numa carta dirigida ao concelho de Lisboa. Nessa mesma ocasião, por entender que:

“poys avedes de teer cavalos que me compre muyto de teerdes com eles armas”, fixou o equipamento militar doravante exigido aos cavaleiros de diversas quantias, tendo responsabilizado o concelho pela escolha de “veedores pera fazer teer os cavalos” e para verificar a posse das armas respectivas. Mais esclarecia que assim o decidira, porque “em outra guisa nom mi poderiades servir como devyades de sy seeria a vos perigoo”.

O novo sistema estava, portanto, montado e a Coroa não deixará de insistir na necessidade de articular as isenções fiscais com a posse de cavalo e de armas. Os funcionários régios cedo começaram a exigir jugada aos cavaleiros que utilizavam as suas montadas em trabalhos agrícolas, ou em feitos de almocreveria, tal como ocorreu em Penacova, em Setembro de 1317, embora esse fosse um costume aceite em muitas vilas da Estremadura.

NOTA: O centro da discórdia parece situar-se naquilo que a Coroa passara a reclamar a quem escusava jugada, embora esta tenha então aceite que os cavaleiros se servissem das montadas “em sas casas pera sas cousas tambem dalbardas come de sselas”, em respeito pelo costume invocado pelo concelho. Como sugeriu J. Mattoso, 1985, é possível que se tivesse exigido foro de almocreve a quem deitava os cavalos a ganho, já que essa era uma prática considerada legítima pelo concelho, embora o monarca viesse a condená-la.

Nas Cortes de Santarém de 1331, fez-se ouvir o protesto de alguns concelhos contra o facto de se exigirem montadas de certa quantia a quem estava dispensado de jugada, quando o seu próprio foro isentava desse tributo aqueles que tivessem um cavalo. A resposta de Afonso IV foi breve, mas desfez todos os equívocos, lembrando que isso seria “strago da terra e mingua e uergonça”, porque a jugada não lhes fôra quitada “por teerem tal caualo com que nom podesen seruir nem defender a terra». In Luís Filipe Oliveira, Os cavaleiros de carneiro e a herança da cavalaria vilã na Estremadura, Os casos de Arruda e de Alcanede, Companhia Portuguesa Editora, 1925, Medievalista, Instituto de Estudos Medievais, Universidade do Algarve, 2005.

Cortesia de U. do Algarve/JDACT