domingo, 9 de setembro de 2012

História da Literatura Portuguesa. A Arte de Furtar. Manuel da Costa. António José Saraiva e Óscar Lopes. «Um depoimento literário muito completo e variado acerca da realidade social do tempo do rei João IV. Nela se espelham ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais»


Cortesia de wikipedia

«Entre as obras de conteúdo panfletário merece atenção especial “Arte de Furtar”, escrita no tempo da Restauração, que excede em interesse informativo e graça literária as obras atrás mencionadas (exceptuando a ‘Fastigímia’) e que ainda hoje ,e lê com agrado, como se verifica aliás pelo número considerável e ainda não devidamente controlado de edições que tem tido.
(…)
A “Arte de Furtar” é um depoimento literário muito completo e variado acerca da realidade social do tempo do rei João IV; nela se espelham ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais. Trata-se, em grande parte, de um panfleto desmascarador dos vários tipos de logro e irregularidade, ao longo dos diversos escalões da sociedade, desde os mendigos artificialmente chagados e das pequenas trapaças de artífice ‘mecânico’ ou de regateira, até às grandes roubalheiras e compadrios do alto funcionalismo. Tão concretas e precisas são as informações que, além de uma incontestável familiaridade com as secretarias de Estado, não pode deixar de pensar-se que este livro aproveita experiência de confessionário, tanto mais que o autor alude várias vezes à confissão e ao receio do Inferno como única escápula que há para a dissimulação de toda e gente. Por outro lado, se o livro tem interessado sobretudo pelo escândalo e desmascaramento, há também a apontar um seu outro importante aspecto: o aspecto apologético de claro apoio ao rei, decerto João IV, a quem foi dedicado, a quem foi mesmo dado, provavelmente muito antes da sua impressão, a julgar pelo que se diz na alusão que é feita a Manuel da Costa no Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.

Com efeito, o livro contém capítulos que são autênticas súmulas para uso régio, como o capítulo XVI, que discute os direitos dinásticos dos Filipes e da Casa de Bragança à Coroa Portuguesa; o capítulo XXI, que é um resumo das normas de direito natural e internacional referentes à guerra; o capítulo L, que sumariamente define um conceito de soberania e discute a jurisdição régia a respeito do clero; e o capítulo final, que recapitula a série de medidas anteriormente sugeridas ao rei para se pôr cobro aos desmandos indicados.
Sob o aspecto jurídico, as teses da “Arte de Furtar” são fundamentalmente as mesmas que vamos encontrar nos doutrinários seus contemporâneos. Sublinhemos a tese, característica dos jesuítas da Restauração, segundo a qual a soberania vem de Deus para os reis, não imediatamente, mas através de um pacto de sujeição dos respectivos povos, que estes não têm a faculdade de revogar ou limitar (capítulo L).
O autor aspira, pois, a um reformismo regalista, ainda fora dos moldes pombalinos da ‘Dedução Cronológica’ (dentro dos quais o rei governa por delegação divina imediata e, portanto, ‘de ciência certa e poder absoluto’, e estabelece uma fundamentação acentuadamente teológica da política e da moral, como na época se encontra mesmo em doutrinários laicos como António Sousa Macedo. Mas não é menos sensível a preocupação de definir as prerrogativas régias perante Roma:
  • O papa não é senhor temporal de tudo, porque Cristo só o poder espiritual lhe deu, e o temporal só os povos lho podiam dar, e consta que não lho deram.
Arrostando com o riso de que ‘lhe levantem que sente mal do eclesiástico’, o autor condena a excessiva sonsa, ‘perto de um milhão’, que trienalmente em Portugal se gasta em “demandas de lana-caprina” junto da Cúria Romana, pois ‘há neste Reino dez mil frades, e mais de quinze mil freiras, e mais de trinta mil clérigos, e mais de cinquenta mil embaraços de consciência em leigos’. Se ligarmos estas frases com a frouxa apologia de ‘certos servos de Deus a quem murmurações chamam por desdém da Apanhia, levantando-lhe que mandam olhar a gente para o céu enquanto lhe apanham a terra’ e com uma exaltação da intolerância inquisitorial completamente oposta à tese que a Companhia de Jesus sustentou sob João IV (capítulo LX), torna-se problemática a autoria do jesuíta Manuel da Costa. Deve notar-se no entanto que este não era bem visto pelo confrade que o identifica como autor, e que foi castigado pelos seus superiores com o afastamento para o Algarve. É de admitir que o texto inicial tivesse sofrido interpolações e modificações por parte do livreiro que parece ter especulado com as primeiras edições do livro em 1744 ou pouco antes. Isso explicaria, entre outras coisas contraditórias, a inserção de dois capítulos (XLV e XLVI) inconfundivelmente decalcados de António Vieira quanto ao estilo e quanto às teses:
  • ‘O dinheiro é o nervo da guerra, e onde falta, arrisca-se a vitória’;
A condenação formal da escravatura, o elogio da missionação e, indirectamente, da Companhia de Jesus. Todavia, insistimos, quaisquer que sejam as interpolações tardias, não há dúvida de que o essencial do livro exprime as preocupações do tempo de João IV encaradas sob o ponto de vista dominante do clero». In Fundação Calouste Gulbenkian.

Cortesia de FC Gulbenkian/JDACT