«Entre as obras de conteúdo panfletário merece atenção
especial “Arte de Furtar”, escrita no tempo da Restauração, que excede em
interesse informativo e graça literária as obras atrás mencionadas (exceptuando
a ‘Fastigímia’) e que ainda hoje ,e lê com agrado, como se verifica aliás pelo
número considerável e ainda não devidamente controlado de edições que tem tido.
(…)
A “Arte de Furtar” é um depoimento literário muito completo
e variado acerca da realidade social do tempo do rei João IV; nela se espelham
ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna
e todo o jogo das forças sociais. Trata-se, em grande parte, de um panfleto
desmascarador dos vários tipos de logro e irregularidade, ao longo dos diversos
escalões da sociedade, desde os mendigos artificialmente chagados e das
pequenas trapaças de artífice ‘mecânico’ ou de regateira, até às grandes
roubalheiras e compadrios do alto funcionalismo. Tão concretas e precisas são
as informações que, além de uma incontestável familiaridade com as secretarias
de Estado, não pode deixar de pensar-se que este livro aproveita experiência de
confessionário, tanto mais que o autor alude várias vezes à confissão e ao
receio do Inferno como única escápula que há para a dissimulação de toda e
gente. Por outro lado, se o livro tem interessado sobretudo pelo escândalo e
desmascaramento, há também a apontar um seu outro importante aspecto: o aspecto
apologético de claro apoio ao rei, decerto João IV, a quem foi dedicado, a quem
foi mesmo dado, provavelmente muito antes da sua impressão, a julgar pelo que
se diz na alusão que é feita a Manuel da Costa no Arquivo da Companhia de Jesus
em Roma.
Com efeito, o livro contém capítulos que são autênticas
súmulas para uso régio, como o capítulo XVI, que discute os direitos dinásticos
dos Filipes e da Casa de Bragança à Coroa Portuguesa; o capítulo XXI, que é um
resumo das normas de direito natural e internacional referentes à guerra; o
capítulo L, que sumariamente define um conceito de soberania e discute a
jurisdição régia a respeito do clero; e o capítulo final, que recapitula a
série de medidas anteriormente sugeridas ao rei para se pôr cobro aos desmandos
indicados.
Sob o aspecto jurídico, as teses da “Arte de Furtar” são
fundamentalmente as mesmas que vamos encontrar nos doutrinários seus
contemporâneos. Sublinhemos a tese, característica dos jesuítas da Restauração,
segundo a qual a soberania vem de Deus para os reis, não imediatamente, mas
através de um pacto de sujeição dos respectivos povos, que estes não têm a
faculdade de revogar ou limitar (capítulo L).
O autor aspira, pois, a um reformismo regalista, ainda fora
dos moldes pombalinos da ‘Dedução Cronológica’ (dentro dos quais o rei governa
por delegação divina imediata e, portanto, ‘de ciência certa e poder absoluto’,
e estabelece uma fundamentação acentuadamente teológica da política e da moral,
como na época se encontra mesmo em doutrinários laicos como António Sousa Macedo.
Mas não é menos sensível a preocupação de definir as prerrogativas régias
perante Roma:
- O papa não é senhor temporal de tudo, porque Cristo só o poder espiritual lhe deu, e o temporal só os povos lho podiam dar, e consta que não lho deram.
Arrostando com o riso de que ‘lhe levantem que sente mal do
eclesiástico’, o autor condena a excessiva sonsa, ‘perto de um milhão’, que
trienalmente em Portugal se gasta em “demandas de lana-caprina” junto da Cúria
Romana, pois ‘há neste Reino dez mil frades, e mais de quinze mil freiras, e
mais de trinta mil clérigos, e mais de cinquenta mil embaraços de consciência
em leigos’. Se ligarmos estas frases com a frouxa apologia de ‘certos servos de
Deus a quem murmurações chamam por desdém da Apanhia, levantando-lhe que mandam olhar a gente para o céu
enquanto lhe apanham a terra’ e com uma exaltação da intolerância inquisitorial
completamente oposta à tese que a Companhia de Jesus sustentou sob João IV
(capítulo LX), torna-se problemática a autoria do jesuíta Manuel da Costa. Deve
notar-se no entanto que este não era bem visto pelo confrade que o identifica
como autor, e que foi castigado pelos seus superiores com o afastamento para o
Algarve. É de admitir que o texto inicial tivesse sofrido interpolações e modificações
por parte do livreiro que parece ter especulado com as primeiras edições do livro
em 1744 ou pouco antes. Isso explicaria, entre outras coisas contraditórias, a inserção
de dois capítulos (XLV e XLVI) inconfundivelmente decalcados de António Vieira
quanto ao estilo e quanto às teses:
- ‘O dinheiro é o nervo da guerra, e onde falta, arrisca-se a vitória’;
A condenação formal da escravatura, o elogio da missionação
e, indirectamente, da Companhia de Jesus. Todavia, insistimos, quaisquer que
sejam as interpolações tardias, não há dúvida de que o essencial do livro
exprime as preocupações do tempo de João IV encaradas sob o ponto de vista
dominante do clero». In Fundação Calouste Gulbenkian.
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