«Chegam facilmente, sem as procurarmos, são
leves, não pedem nada, não oprimem. Palavras aéreas, suspensas no céu branco em
esquadrilhas imóveis. São elas que vemos, agora, só elas. Como se pôde
inventar uma linguagem assim?
Gostaríamos de acreditar que se trata de miragem, de acaso, e sabemos que não é
simples coincidência. A música fere a música, e as palavras de Iniji reencontram
no fundo de nós a sua própria imagem, como sobrevoando um grande lago quieto.
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida,
para nos reencontrar. Insensato, móvel, penetra em nós e escruta-nos. Ou éramos
nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo de Iniji. Não sabíamos falar.
Não possuíamos ideias, nem imagens, perdemos o norte. Longe deste poema, avida
era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a
linguagem das teses e antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações
solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era
possível que nos confundissem com os torrões e calhaus. Não havia nenhuma ciência,
nenhuma lembrança.
Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji?
Claro, considerávamos importantes essas palavras da linguagem, essas
palavras comuns. Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar, ladrar,
matar. Mas há outra língua, que falávamos antes de nascer. Uma língua muito
antiga, não servia para nada, não era a língua do comércio com os homens. Não
era decerto uma língua de sedução, para subornar, ou para dominar. Dela provinham
as palavras, estas palavras: fluidos, vento, bilha, órfã, carris, dormir,
coração, constelada, cisne, lasciate, vapor, contorno, opala, vem... Existiam
ao mesmo tempo que a vida, não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um
voo, eram movimento.
- Iniji -
Não pode mais, Iniji
Esfinges, esferas, falsos signos,
obstáculos no caminho de Iniji.
Movem-se margens
fundações afundam-se
mundo. Não mundo
só o amálgama.
As pedras já não sabem ser pedras
entre todos os leitos da terra
onde está o leito de Iniji?
Menina
pá pequena
Iniji não pode fazer força.
Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo
um corpo já não tem imaginação
não tem paciência com nenhum outro corpo.
Fluidos, fluidos
tudo o que passa
passa sem parar,
passa.
Ariadne mais fina que o seu fio
não consegue reencontrar-se.
Vento,
sopra vento em Arraô,
vento.
continua
Poema de Henri Michaux
In As Magias, Herberto
Helder, Poemas mudados para Português, Assírio & Alvim, edição 0257, 2010,
ISBN 978-972-37-0086-2.
Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT