In Memoriam de JLT
Memória de Feliciano Falcão
Memória de Feliciano Falcão
«De Régio, de assiduidade
irregular, me lembro de ter um dia ficado
indisposto com a audição de uma peça (de Stockhausen?), que terá atingido zonas
mais fundas da sua sensibilidade. Forte era magnífico a ler poesia,
habitualmente de autores coligidos na antologia da Portugália organizada por
Jorge de Sena, e que era, para alguns dos mais novos, indispensável livro de
cabeceira. O pivot do grupo era sem
dúvida Feliciano Falcão, homem de grande exigência cultural no domínio
da literatura e das artes, pintura e música, actualizadíssimo, e muito atento
às grandes questões que estavam no centro do debate cultural, a nível internacional.
Mais tarde, sobretudo quando ele já residia na casa da Serra, tive ocasião de
avaliar a extensão e a fundura dos seus interesses culturais, as suas firmes
preferências musicais, Bartok, Anton von Webern, Luigi Nono, Luciano Berio, o
seu insaciável amor pela literatura, a sua frequentação não apenas dos autores nacionais
e dos franceses, como era de regra nas classes cultivadas da altura, mas também
de escritores de outras áreas culturais como os espanhóis, de quem sempre,
pelas vicissitudes históricas dos nossos dois povos, se sentiu muito próximo,
ou os italianos, e ainda os Alemães de quem se reaproximou, num caso e noutro,
em parte devido às deslocações frequentes que passou a fazer aos países onde
viviam duas das suas filhas. Ainda hoje, quando me lembro do que era a largueza
da cultura e do saber deste homem, e do generoso desejo de partilha que animava
toda a sua intervenção, necessariamente também a que se situava no campo
político, me interrogo como foi possível uma figura assim numa cidade que pouco
teria a ver, espero, com o que me parece ser a cidade de hoje, mais aberta
certamente aos ventos de mudança e inovação.
Por isso, nunca direi o suficiente
acerca da alegria que me traz verificar o reconhecimento pela grandeza de um
homem de cultura que deve ser apontado aos seus concidadãos como modelo de valores,
como referência, numa época sempre à beira de perder o sentido da memória.
A Quinta da Vista Alegre na Serra
tornou-se-me, ao longo dos anos, um lugar de paz e refúgio. Não só à procura de
um interlocutor atento aos múltiplos sinais dos tempos, do mundo da cultura e
dos outros mundos. Mas também, e sobretudo, em busca da generosa sageza de vida
de um homem que combinava a inquietação, a que não faltava uma dimensão
angustiada, pelos problemas dos homens com a serenidade de quem chegara ao
entendimento de que a vida só ganhava sentido na total disponibilidade para com
o Outro. Havia sempre imensa gente naquela casa, mas nunca senti dificuldades
em encontrar espaços de concentração, de partilha, nas conversas com Feliciano
Falcão e outros visitantes (quem sabe se à procura também do que ali,
me levava), à volta de um livro, de um quadro, de um trecho musical, de um
acontecimento político do momento. E havia ainda tempo, quando a visita era
mais demorada, para fazer leituras próprias, ou mesmo escrever. Folheando há
tempos os números que se publicaram da revista Sema, dei, num deles, com dois poemas que escrevi naquele ambiente
de amizade e recolhimento. São textos onde paira a sombra da perda, que poucos
meses antes se dera, de minha Mãe. E era de ‘dor’, de ‘aporia’, de ‘razão
sombria’ que neles falava. Num deles, era a consciência aguda do heraclitiano
fluir irreversível do tempo que dominava, e a Morte que me visitara atingira
também irremediavelmente o espelho da infância onde nunca desistimos de nos
procurar.
Mas àquele canto da sala grande,
dando sobre a cidade lá ao fundo, azuladamente branca, com os verdes densos da
vegetação descendo da Serra, em volta, muitas vezes havia de regressar. E ainda
regresso. Pela memória, consoladora, aproximo-me dos quadros de Miguel Barrias,
Abel Manta, Ventura Porfírio, abro uma janela e deixo que os cheiros
fortes da Serra me devolvam as vidas que tive e as que não tive, oiço pedaços
avulsos de conversas, Zélia falando da Natasha de Guerra e Paz, e, à mesa, sentado, no seu corpo grande e
desajeitado, Feliciano Falcão sublinha artigos de jornal, absorto na fundura
de uma vida a cuja partilha o seu olhar límpido e confiante permanentemente nos
convidou».
In Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de
António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN
972-772-440-X.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT