domingo, 30 de setembro de 2012

O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa: Carl Erdmann. «Com isto dificilmente se pode harmonizar a declaração de queixa de João Anaya, segundo a qual o bispo João Peculiar teria dependido do abade João Cirita; João Cirita deve antes ter sido o sucessor de João Peculiar em Lafões»


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«Já antes de Inocêncio II havia em Portugal numerosos conventos beneditinos, e aqui e além, talvez, também um mosteiro de cónegos regrantes. Mas nenhum deles atingiu importância de maior no século XI ou no primeiro terço do século XII. Os conventos existentes permaneciam isolados e não se associavam em congregações. Os esforços reformadores dos clunicenses e dos augustinianos da França meridional dificilmente atingiram os conventos portugueses. E também a actividade colonizadora, que deu tão grande importância aos monges no resto da Espanha e mais tarde também em Portugal, parece até então não ter começado ainda, razão porque tampouco se ouve falar de protecção ou grande auxílio prestado pelos governantes aos conventos, como de privilégios concedidos aos mesmos pelos Papas. Só a fundação do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1131 iniciou um progresso em todas estas direcções.
O fundador oficial de Santa Cruz é o arcediago Telo, e mais tarde o próprio rei Afonso Henriques se intitulou fundador do mosteiro. Mas quem verdadeiramente promoveu e determinou o especial desenvolvimento desta igreja, não foi nenhum dos dois, foi a bem dizer o bispo João Peculiar. Ei assim como é clara para nós hoje a obra deste homem, pelo menos nos seus principais traços, assim nos é desconhecida a sua personalidade. Apaixonado e até por vezes impulsivo e impetuoso, bem o parece ter sido; tenaz, mas não caprichoso; homem prático, que ponderava prudentemente, se não deixava intimidar e nunca ambicionava o inatingível. A grande autoridade que alcançou, punha-a sempre ao serviço da sua pátria e do seu Príncipe. Como homem da Igreja, cuidou sobretudo de organização. Ou era francês de origem ou tinha estado cedo em França, assim trouxe para a carreira eclesiástica conhecimentos e ideias que lhe asseguraram influência importante desde princípio.

NOTA: A favor da nacionalidade portuguesa do Johannes Peculiaris fala o facto de, em 1152, um sou irmão e uma sua irmã estarem em Portugal e aqui possuírem terras; o documento que prova isto já foi aduzido por S. Maria, Chronica dos Cónegos Regrantes II 444 e encontra-se no livro de JoãoTeotónio, fl.47. A isto impõe-se a passagem muito citada da Vita Tellonis (P. M. H. SS. I 65): Venarat siquidem juvenis quidam Johannes nomine Peculiaris agmomine… Siquidem in suo de Gallie partibus adventu… Que se trate apenas de passageira demora em França, é possível, mas não provável, se atendermos ao sentido das palavras.

Graças ao atraso em que se encontrava ainda Portugal, a sua primeira obra foi a fundação do convento de S. Cristóvão de Lafões que ele próprio dirigiu como abade.

NOTA: Cf. sobretudo o diploma de Afonso Henriques a favor de Lafões em Brandão III 394 App.21. O passo da Vita Tellonis a.a.O.: quoddam suo ducatu et doctrina statuit monasterium apud samcturn Christoforum é menos digna de crédito por isso que no original, Livro Santo fol, 2, à palavra quoddam se segue uma rasura, que parece relativamente moderna, de cerca de 20 letras. Que o próprio João era o abade, deduz-se da sua escritura a favor de Grijó de 26 de Outubro de 1137, no Livro Baio Ferrado de Grijó, fol. 5. Com isto dificilmente se pode harmonizar a declaração de queixa de João Anaya, segundo a qual o bispo João Peculiar teria dependido do abade João Cirita; João Cirita deve antes ter sido o sucessor de João Peculiar em Lafões.

Depois, João Anaya, Prior da Catedral de Coimbra, nomeou-o cónego e magister scholarum e nesta situação uniu-se com o Arcediago Telo.
Este último, tendo ficado desiludido com a impugnação da sua eleição para bispo e tendo caído em forte oposição com o bispo e a maior parte do cabido, planeou a fundação dum convento de cónegos regrantes que lhe devia conceder situação independente. O seu conselheiro, que em tudo lhe dava as directivas, era João Peculiar, e com o auxílio do jovem Afonso Henriques, que souberam interessar pelo plano, conseguiu-se a fundação do convento e da igreja de Santa Cruz junto de Coimbra. Atritos com o bispo e com o cabido, havia-os repetidas vezes. Em compensação encontrava o mosteiro apoio em Afonso Henriques que em breve começou a dotá-lo ricamente, e o escolheu para sua sepultura». In Carl Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa, Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1935.


Cortesia de Separata do Boletim do Instituto Alemão/JDACT