«Já antes de Inocêncio II havia em Portugal numerosos
conventos beneditinos, e aqui e além, talvez, também um mosteiro de cónegos
regrantes. Mas nenhum deles atingiu importância de maior no século XI ou no
primeiro terço do século XII. Os conventos existentes permaneciam isolados e não
se associavam em congregações. Os esforços reformadores dos clunicenses e dos augustinianos
da França meridional dificilmente atingiram os conventos portugueses. E também
a actividade colonizadora, que deu tão grande importância aos monges no resto
da Espanha e mais tarde também em Portugal, parece até então não ter começado ainda,
razão porque tampouco se ouve falar de protecção ou grande auxílio prestado
pelos governantes aos conventos, como de privilégios concedidos aos mesmos
pelos Papas. Só a fundação do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1131 iniciou
um progresso em todas estas direcções.
O fundador oficial de Santa Cruz é o arcediago Telo, e mais
tarde o próprio rei Afonso Henriques se intitulou fundador do mosteiro. Mas
quem verdadeiramente promoveu e determinou o especial desenvolvimento desta
igreja, não foi nenhum dos dois, foi a bem dizer o bispo João Peculiar. Ei
assim como é clara para nós hoje a obra deste homem, pelo menos nos seus
principais traços, assim nos é desconhecida a sua personalidade. Apaixonado e
até por vezes impulsivo e impetuoso, bem o parece ter sido; tenaz, mas não caprichoso;
homem prático, que ponderava prudentemente, se não deixava intimidar e nunca ambicionava
o inatingível. A grande autoridade que alcançou, punha-a sempre ao serviço da
sua pátria e do seu Príncipe. Como homem da Igreja, cuidou sobretudo de
organização. Ou era francês de origem ou tinha estado cedo em França, assim
trouxe para a carreira eclesiástica conhecimentos e ideias que lhe asseguraram influência
importante desde princípio.
NOTA: A favor da nacionalidade portuguesa do Johannes
Peculiaris fala o facto de, em 1152, um sou irmão e uma sua irmã estarem em
Portugal e aqui possuírem terras; o documento que prova isto já foi aduzido por
S. Maria, Chronica dos Cónegos Regrantes II 444 e encontra-se no livro de JoãoTeotónio,
fl.47. A isto impõe-se a passagem muito citada da Vita Tellonis (P. M. H. SS. I 65): Venarat siquidem juvenis quidam Johannes nomine Peculiaris agmomine… Siquidem
in suo de Gallie partibus adventu… Que se trate apenas de passageira demora
em França, é possível, mas não provável, se atendermos ao sentido das palavras.
Graças ao atraso em que se encontrava ainda Portugal, a sua
primeira obra foi a fundação do convento de S. Cristóvão de Lafões que ele próprio
dirigiu como abade.
NOTA: Cf. sobretudo o diploma de Afonso Henriques a favor de
Lafões em Brandão III 394 App.21. O passo da Vita Tellonis a.a.O.: quoddam
suo ducatu et doctrina statuit monasterium apud samcturn Christoforum é menos
digna de crédito por isso que no original, Livro Santo fol, 2, à palavra quoddam se segue uma rasura, que parece
relativamente moderna, de cerca de 20 letras. Que o próprio João era o abade,
deduz-se da sua escritura a favor de Grijó de 26 de Outubro de 1137, no Livro
Baio Ferrado de Grijó, fol. 5. Com isto dificilmente se pode harmonizar a
declaração de queixa de João Anaya, segundo a qual o bispo João Peculiar teria
dependido do abade João Cirita; João Cirita deve antes ter sido o sucessor de João
Peculiar em Lafões.
Depois, João Anaya, Prior da Catedral de Coimbra, nomeou-o cónego
e magister scholarum e nesta situação uniu-se com o Arcediago Telo.
Este último, tendo ficado desiludido com a impugnação da sua
eleição para bispo e tendo caído em forte oposição com o bispo e a maior parte
do cabido, planeou a fundação dum convento de cónegos regrantes que lhe devia
conceder situação independente. O seu conselheiro, que em tudo lhe dava as
directivas, era João Peculiar, e com o auxílio do jovem Afonso Henriques, que
souberam interessar pelo plano, conseguiu-se a fundação do convento e da igreja
de Santa Cruz junto de Coimbra. Atritos com o bispo e com o cabido, havia-os repetidas
vezes. Em compensação encontrava o mosteiro apoio em Afonso Henriques que em
breve começou a dotá-lo ricamente, e o escolheu para sua sepultura». In Carl
Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa,
Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, Coimbra
Editora, 1935.
Cortesia de Separata do Boletim do Instituto Alemão/JDACT