O
Poeta do SÓ
«A 11
de Setembro de 1891, quase nove anos antes, vira ele partir desse modo violento
para a Cidade Santa um dos seus fantasmas tutelares. Se não fosse, pois, o
episódio da tísica, iríamos hoje encontrar António Nobre incorporado na teoria
dos nossos grandes suicidas, como irmão de Antero, Camilo, Soares dos Reis,
Trindade Coelho, Manuel Laranjeira, todos esses, que, sentindo suas almas de
eleição com as largas asas prisioneiras na estreita gaiola da vida, só viram
uma solução, quebrarem-lhe as barreiras e arremessarem-se para o Infinito.
Uma
criação de Deus, mas incompleta;
Águia,
encerrando um coração de pomba,
Cedro
que dava folhas de violeta!
Nestes
três versos da poesia Ca(ro) Da(ta) Ver(mibus)
parece Anto definir-se, com uma assombrosa clarividência. Mas
este e outros conceitos que no Só abundam, cheios de altivez e de
convicção no próprio valor, e até coerentes com as doutrinas que, a despeito
das tendências democraticamente niveladoras já então eclodindo com vigor, prenhavam
a atmosfera mental da época, doutrinas de forte crença na acção dos super-homens,
tendo Carlyle, Emerson e Nietzsche por apóstolos-pontífices, este e outros
conceitos, dizia, serviram de certo modo aos detractores de Nobre para o
apodarem de vaidoso, exibitivo e ávido de notoriedade rápida.
A
incompreensão dos Artistas pelo comum das gentes, às vezes, como neste caso,
reforçada pela inveja dos que já pertencem a uma esfera superior, é reincidente
no velho erro de julgar aqueles à sua imagem. Não busca elevar-se, nivelar-se
com eles nos seus momentos de genial intuição, meter-se na zona da áurea claridade
que lhes dimana da alma e do cérebro.
Em
vez disso, e embora aproveite e muito da sua acção, urde-lhes de rastos e ferozmente
as maiores armadilhas, pretende aluir pela base o ‘Sinai’ onde eles se erguem
na inspiração que topeta o céu, força por inquinar-lhes a fonte de Juvência
onde se alimentam de ideal, na ânsia bastarda de os ver, quando derrubados, iguais
a si, pigmeus e míseros, integrados na massa amorfa. Quando menos, comete o
desacato de traduzi-los para figuras banais e isentas de prestígio.
Ora,
porque se há-de julgar um produto artificial e rebuscado a excentridade de
António Nobre, e não um fruto espontâneo da sua especial estrutura íntima,
impossível de arrancar da árvore humana donde brotara, sem a mutilar?
Para
mim, a chamada naturalidade, feita de simpleza charra, das maiorias, é que
seria nos marcados na fronte pelo fatídico sinal dos raros um preciosismo
monstruoso, um aborto condenável e falso, por estranho aos seus organismos de
excepção. Devemos tomar o mundo tal como é: vário, desigual, matizado de contrastes,
não apedrejando os que fogem ao figurino previsto e à fórmula corriqueira.
Aliás,
toda a mocidade talentosa é atreita a ímpetos exibicionistas, perdidos mais
tarde por completo, e mais acentuados nuns ou mais ténues noutros, conforme os
temperamentos. Nem Antero, cujas ambições literárias foram sempre tíbias, não
publicando as obras senão a vivas instâncias dos amigos, e, para mais, se
tornou no vulto de íntegra e majestosa beleza moral que todos admiramos, nem
ele foi escapo a esses ímpetos moços. Dizem os seus biógrafos que em Coimbra
bastante cultivou a excentridade.
Mas,
focando sob este prisma António Nobre, e aparte a porção fugitiva que dessa
pecha geral à mocidade lhe caberia, que outros motivos se deparam para à sua
singularidade ser atribuída a índole dum arranjo, duma intenção, dum postiço?
Pois não o contradiz com eloquência o facto do seu isolamento em Paris, isolamento
de monge, e, sobretudo, o caracter nacional que se obstinou em vincar no Só,
apesar da sua elaboração ter decorrido quase toda longe de Portugal e entre o
tumulto de civilizações intensas e absorventes, em promiscuidade com novas e
arrevezadas estesias?
Enquanto
ele, num ambiente estrangeiro, não se estrangeirava e ficava fiel ao espírito
da sua grei, outros, e tantos, escritores portugueses, sem porem sequer um pé
fora da raia, apenas por snobismo, cuidavam de entornar nos seus livros ideias
estranhas, na avidez dum sucesso retumbante, em cabotinas estilizações da paisagem
e da fauna humana alheias, deixando as próprias em afrontoso repúdio.
Em
reforço deste argumento, colho em os Serões
de Março de 1909, dum pequeno artigo intitulado “António Nobre” e assinado pelo pseudónimo ‘Lia’, os seguintes dizeres testemunhais:
- 'Há dias estive a ler, ao acaso, versos de António Nobre, nas Despedidas, livro melancólico, publicado já depois da morte do autor. Isto fez-me recordar algumas horas da vida desse poeta, que passou pelo mundo rapidamente, deixando em muitos espíritos a inolvidável sugestão do seu doloroso talento. Essas horas, insignificantes para ele, e de que, certamente nenhuma lembrança lhe ficou, fixaram-se-me na memória, pois foram as únicas em que tive ocasião de vê-lo, de ouvi-lo conversar, de apreciar o seu espirito suavemente sombrio’.
In
César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa,
PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
continua
Cortesia
de Livraria Central Editores/JDACT