‘Ordenamos e estabelecemos por lei que nós nem outrem do nosso
senhorio, de qualquer estado e condição que seja, nem tenha tavolagem em praça,
nem em escondido’. In Livro das Leis e Posturas Antigas, Lei de Afonso IV.
«Quem hoje se encaminhar ao longo da rua vulgarmente chamada dos
Capelistas, dobrar o penúltimo quarteirão da rua Nova da Princesa e seguir pela
rua dos Confeiteiros, caminho da Ribeira Velha, terá passado por cima da
sepultura das mais nobres ruínas da antiga Lisboa. A rua Nova, designada assim
por antonomásia, passava pouco mais ou menos pelo sítio em que hoje está
lançada a rua Nova de El-rei: a sua origem remontava quase ao berço da monarquia
e já no tempo do rei Fernando I era o centro da actividade comercial da cidade,
então frequentada de estrangeiros de diversas nações, que vinham buscar o nosso
trato e comércio. Depois da feitura da nova muralha (1373-5) prolongava-se com
esta e vinha findar nas proximidades da moderna igreja de S. Julião pelo lado
do ocidente, enquanto pelo topo oriental terminava no Pelourinho Velho. Aqui, a
povoação dividia-se como em dois troncis:
- um que, subdividido em muitos ramos de ruas enredadas e escuras, subia para a Alcáçova;
- outro que seguia ao longo da muralha e ia desembocar fora das Portas do Mar, no bairro chamado Vila Nova de Gibraltar.
Entre estas duas divisões jazia a Alfama, a cuja frente se elevava a
velha catedral. A Alfama fora no tempo do domínio serraceno o arrabalde de
Lisboa gótica; fora o bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto quando a
Medina Achbuna pousava enroscada tristemente no seu ninho de pedra, no que
depois se chamou a Alcáçova e hoje o Castelo. Quando, porém, no século XIII a
população cristã, alargando-se para o ocidente, veio expulsar os judeus do seu
bairro primitivo, situado na actual cidade baixa, e os encantou para a parte do
sul da catedral, a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importância, e
converteu-se afinal num bairro de gente miúda e, sobretudo, de pescadores. A rua
Nova, a porta de Lisboa, rica de seiva, chamara a redor de si toda a vida da
povoação. A velha judiaria era agora o coração da cidade, e a Alfama, em parte
feita plebeia, e judaizando em parte, viu pender e murchar a sua guapice,
transitória e morredoura como todas as glórias do mundo.
Nesse bairro, no fim da rua chamada há séculos das Canastras, junto às
Portas do Mar, corria uma casa baixa, mas solidamente edificada, a qual
contrastava com as que lhe estavam próximas pela sua muita antiguidade: as duas
janelas, cujas vergas se arqueavam à feição de uma ferradura, abertas nos dois
extremos da frontaria, a igual distância do largo e achatado portal que lhes
ficava no meio, desdiziam das frestas pontiagudas e estreitas que davam luz às
moradas vizinhas, bem como o portal, igualmente terminado em volta de
ferradura, contrastava com as elegantes portadas góticas dos outros edifícios, cujos
telhados angulosos e bordados de ameias também diversificavam do tecto daquele
edifício mourisco, que oferecia aos seus habitadores um eirado espaçoso, onde
pelas madrugadas serenas ou ao pôr do Sol de um dia de estio, podiam ir
respirar uma viração mais pura, que raras vezes passava pelas ruas tortuosas,
estreitas e imundas da velha cidade.
Eram perto das seis da tarde do dia 6 de Maio do ano de 1389. No pequeno
terreiro que dizia, pela parte inferior do muro, para as Portas do Mar, já mal
se divisavam os objectos, porque a noite descia rapidamente do lado oriental,
posto que ainda o clarão avermelhado do crepúsculo tingisse os altíssimos
coruchéus azulejados que serviam de topo e remate às torres da catedral». In Vitorino
Nemésio, Portugal a Terra e o Homem, Antologia de Textos de Escritores dos
séculos XIX-XX, Edição da F. C Gulbenkian, Lisboa, 1978.
Cortesia da F. C. Gulbenkian/JDACT