sábado, 29 de setembro de 2012

A Tavolagem do Besteiro. Lisboa século XV. Vitorino Nemésio. «… jazia a Alfama, a cuja frente se elevava a velha catedral. A Alfama fora no tempo do domínio serraceno o arrabalde de Lisboa gótica; fora o bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto quando a Medina Achbuna pousava enroscada…»



jdact e cortesia da literaturaacoriana

Ordenamos e estabelecemos por lei que nós nem outrem do nosso senhorio, de qualquer estado e condição que seja, nem tenha tavolagem em praça, nem em escondido’. In Livro das Leis e Posturas Antigas, Lei de Afonso IV.

«Quem hoje se encaminhar ao longo da rua vulgarmente chamada dos Capelistas, dobrar o penúltimo quarteirão da rua Nova da Princesa e seguir pela rua dos Confeiteiros, caminho da Ribeira Velha, terá passado por cima da sepultura das mais nobres ruínas da antiga Lisboa. A rua Nova, designada assim por antonomásia, passava pouco mais ou menos pelo sítio em que hoje está lançada a rua Nova de El-rei: a sua origem remontava quase ao berço da monarquia e já no tempo do rei Fernando I era o centro da actividade comercial da cidade, então frequentada de estrangeiros de diversas nações, que vinham buscar o nosso trato e comércio. Depois da feitura da nova muralha (1373-5) prolongava-se com esta e vinha findar nas proximidades da moderna igreja de S. Julião pelo lado do ocidente, enquanto pelo topo oriental terminava no Pelourinho Velho. Aqui, a povoação dividia-se como em dois troncis:
  • um que, subdividido em muitos ramos de ruas enredadas e escuras, subia para a Alcáçova;
  • outro que seguia ao longo da muralha e ia desembocar fora das Portas do Mar, no bairro chamado Vila Nova de Gibraltar.
Entre estas duas divisões jazia a Alfama, a cuja frente se elevava a velha catedral. A Alfama fora no tempo do domínio serraceno o arrabalde de Lisboa gótica; fora o bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto quando a Medina Achbuna pousava enroscada tristemente no seu ninho de pedra, no que depois se chamou a Alcáçova e hoje o Castelo. Quando, porém, no século XIII a população cristã, alargando-se para o ocidente, veio expulsar os judeus do seu bairro primitivo, situado na actual cidade baixa, e os encantou para a parte do sul da catedral, a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importância, e converteu-se afinal num bairro de gente miúda e, sobretudo, de pescadores. A rua Nova, a porta de Lisboa, rica de seiva, chamara a redor de si toda a vida da povoação. A velha judiaria era agora o coração da cidade, e a Alfama, em parte feita plebeia, e judaizando em parte, viu pender e murchar a sua guapice, transitória e morredoura como todas as glórias do mundo.
Nesse bairro, no fim da rua chamada há séculos das Canastras, junto às Portas do Mar, corria uma casa baixa, mas solidamente edificada, a qual contrastava com as que lhe estavam próximas pela sua muita antiguidade: as duas janelas, cujas vergas se arqueavam à feição de uma ferradura, abertas nos dois extremos da frontaria, a igual distância do largo e achatado portal que lhes ficava no meio, desdiziam das frestas pontiagudas e estreitas que davam luz às moradas vizinhas, bem como o portal, igualmente terminado em volta de ferradura, contrastava com as elegantes portadas góticas dos outros edifícios, cujos telhados angulosos e bordados de ameias também diversificavam do tecto daquele edifício mourisco, que oferecia aos seus habitadores um eirado espaçoso, onde pelas madrugadas serenas ou ao pôr do Sol de um dia de estio, podiam ir respirar uma viração mais pura, que raras vezes passava pelas ruas tortuosas, estreitas e imundas da velha cidade.
Eram perto das seis da tarde do dia 6 de Maio do ano de 1389. No pequeno terreiro que dizia, pela parte inferior do muro, para as Portas do Mar, já mal se divisavam os objectos, porque a noite descia rapidamente do lado oriental, posto que ainda o clarão avermelhado do crepúsculo tingisse os altíssimos coruchéus azulejados que serviam de topo e remate às torres da catedral». In Vitorino Nemésio, Portugal a Terra e o Homem, Antologia de Textos de Escritores dos séculos XIX-XX, Edição da F. C Gulbenkian, Lisboa, 1978.

Cortesia da F. C. Gulbenkian/JDACT