quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Serões na Aldeia. Poesia. Política. «Se é sem dúvida Amor a cobardia de buscar nos lençóis a mais sombria razão de encantamento e de desprezo; não há dúvida, Amor, que te não fujo e que, por ti, tão cego, surdo e sujo, tenho vivido eternamente preso!»


Pintura de Maluda, Marvão
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Soneto do Cativo
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção.

O espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão.

Se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética

Pintura de Maluda, Auto-retrato
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Soneto de Separação
De repente do riso fez-se o pranto
silencioso e branco como a bruma
e das bocas unidas fez-se espuma
e das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
que dos olhos desfez a última chama
e da paixão fez-se o pressentimento
e do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
fez-se de triste o que se fez amante
e de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
fez-se da vida uma aventura errante
de repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'

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