quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Zé Povinho sem Utopia. Ensaio sobre o estereótipo nacional português. João Medina. «O próprio ‘kitsch’ não podia ficar esquecido nesta faina de definir a identidade do nosso País, [...] desde a cerâmica popular de Barcelos às formas mais sofisticadas, e nem por isso menos possidónias ou pretensiosas, de arte reverenciada pelos poderes públicos ou pela crítica oficial»


João Chagas. Varões assinalados, 1910

Rui Pimentel, 2001
jdact

«Outras formas tradicionais de identificação das nossas ‘imagens de marca’ teriam de ser, depois, estudadas, tal como o Hino Nacional adoptado pela I Republica, e desde então mantido, mais a bandeira verde-rubra adoptada pela mesma altura, e toda uma panóplia de heróis e de santos que se pretende examinar segundo diversos parâmetros de pesquisa sociológica, politológica, antropológica cultural, etc., de modo a mostrar que o país e as suas gentes cultuaram formas bastante distintas de figuras emblemáticas nos mais diversos campos da sua actividade, desde as opções políticas à devoção popular, desde os referentes ultramarinos aos monarcas mais amados, ou, ao invés, detestados, pelo povo, desde os monumentos que melhor espelharam a nossa sensibilidade e modo-de-ser até às formas supremas que essa sensibilidade assumiu nas artes, na pintura, na escultura na literatura, etc. O próprio ‘kitsch’ não podia ficar esquecido nesta faina de definir a identidade do nosso País, investigado como forma específica da portugalidade, já que este se estende desde a cerâmica popular de Barcelos às formas mais sofisticadas, e nem por isso menos possidónias ou pretensiosas, de arte reverenciada pelos poderes públicos ou pela crítica oficial, como os quadros de Malhoa, a escultura de José de Guimarães ou os livros de Júlio Dantas, para só citar alguns dos muitos ‘jarrões’ que, num passado mais longínquo ou até num presente mais actual, passam por formas superiores de cultura e recebem público tributo de veneração e respeito.

NOTA: Como o mostrou Abraham Moles no seu famoso estudo Le Kitsch (Paris, Maison Mame, 1971), o ‘kitsch’ não é apenas o mau gosto nas artes, como, entre nós, Almada Negreiros o catalogara, em 1915, na sua famosa e brilhante imprecação do
Manifesto anti-Dantas contra todos os Júlios Dantas das artes e das letras da I República. Entre nós, a análise sociológico-cultural de tal categoria levar-nos-ia demasiado longe, pois múltiplos e quase infinitos são os nossos artistas, instituições, objectos, galos de Barcelos, miniaturas, cerâmicas fálicas das Caldas, etc., escritores e cantores ‘kitsch’, além de devoções religiosas.

Eis, em suma, o que devia ou podia ser o essencial de uma pesquisa sobre a identidade nacional que pretendesse tomar em consideração as vertentes mais decisivas ou caracterizadoras de uma autognose nacional, de um lusitano ‘Selbsbewusstsein’ palavrão teutónico de ressaibo hegeliano, que significa, à letra, estar consciente de si mesmo, tarefa que já há alguns anos vimos tentando esboçar, embora de forma fragmentária e descontínua.
Enquanto um grupo de investigadores não tomar entre mãos essa tarefa, o que aqui deixamos constitui um pequeno contributo para esse monumento maior que um dia, esperamos, se erguerá, já não com as velhas e rançosas tinetas nacionalistas de outrora, antes apostado em entender a especificidade lusa tanto no interior da nova Europa, a cuja construção nos associámos desde 1986, bem como na dialéctica difícil de inter-relações nacionais e étnicas desse todo nessa comunidade humana mais vasta, a nação europeia a que pertencemos e da qual por largos anos estivemos historicamente distraídos, apostados que andámos em erguer um ‘novo reino’, como diria Camões, essa teimosa, gloriosa e, ao fim e ao cabo, absurda e até quixotescamente quimérica empresa dos nossos antepassados desde que cedemos à Tentação ultramarina, a maiúscula aí está para lhe conferir dignidade de categoria conceptual, dispersão ou desiberização ou deseuropeização diaspórica a que o 25 de Abril de 1974 veio pôr termo definitivo, fazendo-nos voltar à Ítaca chamada Ibéria, ao nativo torrão chamado Europa, não para dar razão tão tardia ao ‘Velho do Restelo’ que invectivara a nossa aventura de Jasões cruzados com Ícaros coloniais, bem como os fatais e intermináveis naufrágios de uma história que, a partir da saída de Belém em 8 de Julho de 1497, até à revolução do 25 de Abril e à descolonização dela decorrente, teria por força de ser uma história trágico marítima». In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.

Cortesia da CM de Cascais/JDACT