jdact
«Outras formas tradicionais de identificação das nossas ‘imagens de
marca’ teriam de ser, depois, estudadas, tal como o Hino Nacional adoptado pela
I Republica, e desde então mantido, mais a bandeira verde-rubra adoptada pela
mesma altura, e toda uma panóplia de heróis e de santos que se pretende
examinar segundo diversos parâmetros de pesquisa sociológica, politológica,
antropológica cultural, etc., de modo a mostrar que o país e as suas gentes
cultuaram formas bastante distintas de figuras emblemáticas nos mais diversos
campos da sua actividade, desde as opções políticas à devoção popular, desde os
referentes ultramarinos aos monarcas mais amados, ou, ao invés, detestados, pelo
povo, desde os monumentos que melhor espelharam a nossa sensibilidade e
modo-de-ser até às formas supremas que essa sensibilidade assumiu nas artes, na
pintura, na escultura na literatura, etc. O próprio ‘kitsch’ não podia ficar
esquecido nesta faina de definir a identidade do nosso País, investigado como
forma específica da portugalidade, já que este se estende desde a cerâmica
popular de Barcelos às formas mais sofisticadas, e nem por isso menos
possidónias ou pretensiosas, de arte reverenciada pelos poderes públicos ou
pela crítica oficial, como os quadros de Malhoa, a escultura de José de
Guimarães ou os livros de Júlio Dantas, para só citar alguns dos muitos ‘jarrões’
que, num passado mais longínquo ou até num presente mais actual, passam por
formas superiores de cultura e recebem público tributo de veneração e respeito.
NOTA: Como o mostrou Abraham Moles no seu famoso estudo Le Kitsch (Paris, Maison Mame, 1971), o ‘kitsch’
não é apenas o mau gosto nas artes, como, entre nós, Almada Negreiros o
catalogara, em 1915, na sua famosa e brilhante imprecação do
Manifesto anti-Dantas contra
todos os Júlios Dantas das artes e das letras da I República. Entre nós, a
análise sociológico-cultural de tal categoria levar-nos-ia demasiado longe,
pois múltiplos e quase infinitos são os nossos artistas, instituições, objectos,
galos de Barcelos, miniaturas, cerâmicas fálicas das Caldas, etc., escritores e
cantores ‘kitsch’, além de devoções religiosas.
Eis, em suma, o que devia ou podia ser o essencial de uma pesquisa sobre
a identidade nacional que pretendesse tomar em consideração as vertentes mais
decisivas ou caracterizadoras de uma autognose nacional, de um lusitano ‘Selbsbewusstsein’
palavrão teutónico de ressaibo hegeliano, que significa, à letra, estar
consciente de si mesmo, tarefa que já há alguns anos vimos tentando esboçar,
embora de forma fragmentária e descontínua.
Enquanto um grupo de investigadores não tomar entre mãos essa tarefa, o
que aqui deixamos constitui um pequeno contributo para esse monumento maior que
um dia, esperamos, se erguerá, já não com as velhas e rançosas tinetas
nacionalistas de outrora, antes apostado em entender a especificidade lusa
tanto no interior da nova Europa, a cuja construção nos associámos desde 1986,
bem como na dialéctica difícil de inter-relações nacionais e étnicas desse todo
nessa comunidade humana mais vasta, a nação
europeia a que pertencemos e da qual por largos anos estivemos historicamente
distraídos, apostados que andámos em erguer um ‘novo reino’, como diria Camões,
essa teimosa, gloriosa e, ao fim e ao cabo, absurda e até quixotescamente
quimérica empresa dos nossos antepassados desde que cedemos à Tentação
ultramarina, a maiúscula aí está para lhe conferir dignidade de categoria
conceptual, dispersão ou desiberização ou deseuropeização diaspórica a que o 25
de Abril de 1974 veio pôr termo definitivo, fazendo-nos voltar à Ítaca chamada Ibéria,
ao nativo torrão chamado Europa, não para dar razão tão tardia ao ‘Velho do
Restelo’ que invectivara a nossa aventura de Jasões cruzados com Ícaros coloniais,
bem como os fatais e intermináveis naufrágios de uma história que, a partir da
saída de Belém em 8 de Julho de 1497, até à revolução do 25 de Abril e à descolonização
dela decorrente, teria por força de ser uma história trágico marítima». In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio
sobre o estereótipo nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004,
ISBN 972-637-118-X.
Cortesia da CM de Cascais/JDACT