«Mas 1889 é uma data já
adiantada no desencadeamento e desenvolvimento das ideias revolucionárias que
formaram a Geração de 70. É uma data que marca já muita renúncia no plano da
acção política, social e mesmo cultural. Portanto, vejamos primeiro quais os
factores históricos principais, referentes não só a Portugal mas também ao
resto do mundo, que determinaram a formação dessa geração decisiva para a
cultura portuguesa.
Burguesia, Democracia, Revolução, de 1848 a 1871
É evidente que temos de
utilizar com extrema prudência o termo, já tão gasto, de burguesia. É necessário
constantemente especificar se se trata de grande, média ou pequena burguesia;
de burguesia comercial, financeira ou industrial; financeira ou industrial;
rural ou citadina; recente ou de antigas tradições, etc.
No entanto, pode
dizer-se, generalizando, que a burguesia é a grande classe social que se afirma
plenamente desde o princípio do século XIX na Europa. Uma classe social que,
sendo formada por diversos estratos políticos, económicos e sociais, assimilou
todos os outros com o objectivo de conquistar a hegemonia da produção. Esta
burguesia do século XIX, sobretudo a que gerou e por sua vez foi gerada pela
Revolução
Francesa, renova-se
incessantemente, atingindo assim uma consciência de classe superior em que
predomina o culto da técnica. A renovação processa-se lenta mas seguramente,
assimilando o próprio processo revolucionário.
Este processo
revolucionário, na Europa e mais precisamente em França, é assinalado por duas
datas decisivas: 1848 e 1871. 1848, entre 23 e 26 de Junho, é a insurreição dos
bairros operários do Leste de Paris, insurreição esmagada pela repressão,
confiada a Cavaignac. 1871, entre Março e Maio, é a insurreição da Comuna de
Paris, esmagada durante a semana sangrenta de 22 a 27 de Maio pelos ‘Versalheses’.
‘Quarante-huit’,
termo consagrado pela história europeia do século XIX, marca antes de mais a
eclosão de revoluções liberais de carácter nacionalista em Itália, na Alemanha,
na Áustria, na Hungria. De 1848, nasceu o sufrágio universal, igualitário. O
movimento de democratização burguesa acelera-se. A democracia torna-se então a
base ideológica da política europeia do século XIX.
Mas que democracia? O
termo tornou-se tão viciado como o de ‘burguesia’. A verdade é que, em suma, a democracia
resultante da queda da Monarquia de Julho, a 28 de Fevereiro de 1848, e do
triunfo da República, em França, não passou de uma democracia, digamos, provisória.
A chamada democracia, instituída pelo novo regime republicano francês e tornada
como modelo por outros países, inclusivamente por Portugal, torna-se de facto
uma democracia meramente formal, mais política do que social. Daí a insurreição
operária de Junho de 1848. Daí a formação da democracia comunalista que, em
Paris, em 1871, através de um movimento abertamente revolucionário, tenta impor
essa doutrina. Não o conseguiu, além do mais pelas suas fatais contradições
internas: a impossibilidade de conciliar a tradição jacobina de 1848, o
mutualismo de Proudhon e o colectivismo da Primeira Internacional, o qual
estava por sua vez dividido entre a tendência marxista ortodoxa e a tendência
anarquista dos partidários de Bakunine.
Cultura Romântica, Ideais Socialistas, Republicanismo
Todas estas contradições
se reflectem na cultura da época, um pouco por toda a Europa. Os mais importantes
iniciadores do romantismo as manifestam. Para só citar um exemplo, entre muitos
no domínio da literatura universal, exemplo relativo a este período da segunda
metade do século XIX, analise-se a atitude política do poeta alemão Heinrich
Heine, o qual influenciou em parte Antero de Quental, sobretudo o Antero das Primaveras
românticas.
Heine, que tanto exaltou
os movimentos revolucionários em França desde 1830; Heine que, gravemente
doente, paralítico, exalta em carta a um amigo, Fanny Lewald, a 14 de Março de
1848, a revolução de Fevereiro de 1848 que determinou a queda da Monarquia de
Julho, lamentando não ter podido participar nela fisicamente e intelectualmente,
esse mesmo Heine escreve, alguns meses antes da sua morte, ocorrida a 17 de
Fevereiro de 1856, referindo-se à possível vitória futura do proletariado e,
portanto, dos revolucionários mais avançados de então, os comunistas:
- «Ce n’est qu’avec horreur et effroi que je pense à l’époque où ces sombres iconoclastes parviendront à la domination; de leurs mains caleuses, ils briseront sans merci les statues de marbre de la beauté si chères à mon coeur; ils fracasseront toutes ces babioles et fanfreluches fantastiques de l’art qu’aimait tant le poète; ils détruiront mes bois de lauriers et y planteront des pommes de terre (...) et, hélas! Mon Livre des chants servira à l’épicier pour en faire des cornets, où il verserá du café ou du tabac à priser pour les vieilles femmes de l’avenir. Hélas! je prévois cela et je suis saisi d’une indicible tristesse en pensant à la ruine dont le prolétariat vainqueur menace mes vers, qui périront avec tout l’ancien monde romantique. Et pourtant, je l’avoue avec franchise, ce même communisme, si hostile à tous mes intérêts et mês penchants, exerce sur mon âme un charme dont je ne puis me défendre (...) quoi qu’il en soit, j’en suis possédé».
In Álvaro Manuel
Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria
Bertrand, 1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT