segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «A conferência de Berlim oferece uma data fundamental, 1884-1885, na medida em que procede a uma revisão da própria argumentação histórica dos colonizadores. A Conferência derrota os representantes portugueses, cujos direitos assentavam apenas na história»



jdact

«Por sua vez os africanos, obrigados a dar-se conta da sua fragilidade económica e militar, sobretudo no século XIX, recorrendo os europeus às metralhadoras pesadas, aos canhões com ou sem recuo e à própria dinamite, foram forçados a adoptar formas de negociação com os Outros. A conferência de Berlim oferece uma data fundamental, 1884-1885, na medida em que procede a uma revisão da própria argumentação histórica dos colonizadores. A Conferência derrota os representantes portugueses, cujos direitos assentavam apenas na história, impondo aos colonizadores a obrigação da ocupação efectiva, que, entre o mais, devia destroçar para sempre o que ainda restava das velhas hegemonias africanas, que tinham resistido, frequentemente através de formas argutas de falsa colaboração, à violência das razias dos negreiros, assim como à dos novos trabalhos impostos sobretudo pelo novo sistema comercial, que em alguns pontos liquidou fracções da flora e da fauna.
Ou seja, a história só está em condições de intervir a partir do momento em que os africanos recuperam o seu estatuto de homens "normais", o que modifica também o estatuto do continente, que continua contudo a abrigar feras, entre as quais se contam homens, caracterizados entre o mais pela violência da guerra, a nova fisionomia da antropofagia. O choque opera-se entre os que querem devolver aos africanos a humanidade, que naturalmente sempre foi a sua, permitindo que tomem assento entre os homens da norma antropológica e social, e aqueles que recusam, subtilmente, semelhante operação, aceitando a condenação da história ou da religião, sublinhando a rejeição, pelos africanos, dos direitos do homem e do cidadão.

Os portugueses, os africanos e a História
Uma das questões mais singulares da historiografia portuguesa reside na necessidade de recusar ou de reconhecer a história do Outro. Embora convenha ser mais modesto, na medida em que a "história nacional", só emerge como discurso especificamente associado à "consciência colectiva" , a partir do momento em que a escola pode assumir a tarefa de assegurar a homogeneização da história e a sua transmissão. Referindo-se à criação da "consciência nacional" portuguesa, José Mattoso salienta só ter sido ela possível graças ao serviço militar obrigatório e à escola. Estes dois pilares permitem verificar que, se assim fosse, só podia existir consciência nacional já nos anos finais do século XIX, primeiros anos do século XX.
Qual seria a consciência histórica dos marinheiros e dos soldados portugueses, analfabetos na sua maior parte? Que história do Outro estavam eles em condições de ouvir e de compreender? Uma das tarefas coloniais mais evidentes residiu por isso na identificação e no registo das histórias dinásticas, regionais ou até nacionais. Podemos verificar contudo que o tratamento dado à história depende sempre da maneira como são julgados e catalogados os povos.
Mas podemos acrescentar as diferenças que se verificam entre os colonizadores: as histórias naturais e morais americanas, provindas dos teólogos ou dos funcionários espanhóis, não encontram paralelo no discurso português, a não ser possivelmente na China, onde seria mais um discurso "jesuítico" exprimindo-se em português, do que um discurso intrinsecamente português.
Ou seja, talvez se possa afirmar que os discursos históricos nacionais só se banalizam após os regimes republicanos, revoluções inglesas do século XVII, revoluções americana e francesa do século XVIII, substituindo a história do soberano e da sua família pela história da nação. Georges Gusdorf fez notar em tempos que a batalha de Valmy permitira que o general Kellermann mandassse avançar as suas tropas, essencialmente formadas por voluntários, isto é, republicanos, em nome da nação. O corte assinalado por Gusdorf é essencial, na medida em que as tropas que tinham avançado em nome dos santos, lembremos Santiago e S. Jorge, na Península, passam a agir em nome da nação.
Quer isto dizer que, na longa duração, as histórias nacionais se confundiam ou eram substituídas pelas histórias das dinastias ou das famílias reais. Podemos por isso salientar, sem o menor titubeio, que a experiência inglesa do século XVII, é amplamente confirmada e reforçada pela emergência das repúblicas onde a burguesia ocupa o lugar primacial. O que só permitia ver a nobreza, terá de considerar a existência cada vez mais envolvente da burguesia, que arrasta sempre consigo o "tiers-état",este "terceiro-estado" que assegura a produção e o funcionamento eficaz do quotidiano». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT