«Por sua vez os africanos, obrigados a dar-se conta da sua fragilidade
económica e militar, sobretudo no século XIX, recorrendo os europeus às metralhadoras
pesadas, aos canhões com ou sem recuo e à própria dinamite, foram forçados a
adoptar formas de negociação com os Outros. A conferência de Berlim oferece
uma data fundamental, 1884-1885, na medida em que procede a uma revisão da
própria argumentação histórica dos colonizadores. A Conferência derrota
os representantes portugueses, cujos direitos assentavam apenas na história,
impondo aos colonizadores a obrigação da ocupação efectiva, que, entre o mais,
devia destroçar para sempre o que ainda restava das velhas hegemonias
africanas, que tinham resistido, frequentemente através de formas argutas de
falsa colaboração, à violência das razias dos negreiros, assim como à dos novos
trabalhos impostos sobretudo pelo novo sistema comercial, que em alguns pontos
liquidou fracções da flora e da fauna.
Ou seja, a história só está em condições de intervir a partir do
momento em que os africanos recuperam o seu estatuto de homens
"normais", o que modifica também o estatuto do continente, que
continua contudo a abrigar feras, entre as quais se contam homens, caracterizados
entre o mais pela violência da guerra, a nova fisionomia da antropofagia. O
choque opera-se entre os que querem devolver aos africanos a humanidade, que
naturalmente sempre foi a sua, permitindo que tomem assento entre os homens da
norma antropológica e social, e aqueles que recusam, subtilmente, semelhante
operação, aceitando a condenação da história ou da religião, sublinhando a
rejeição, pelos africanos, dos direitos do homem e do cidadão.
Os portugueses, os africanos e a História
Uma das questões mais singulares da historiografia portuguesa reside na
necessidade de recusar ou de reconhecer a história do Outro. Embora convenha
ser mais modesto, na medida em que a "história nacional", só emerge como
discurso especificamente associado à "consciência colectiva" , a
partir do momento em que a escola pode assumir a tarefa de assegurar a homogeneização
da história e a sua transmissão. Referindo-se à criação da "consciência
nacional" portuguesa, José Mattoso salienta só ter sido ela possível
graças ao serviço militar obrigatório e à escola. Estes dois pilares
permitem verificar que, se assim fosse, só podia existir consciência nacional já
nos anos finais do século XIX, primeiros anos do século XX.
Qual seria a consciência histórica dos marinheiros e dos soldados portugueses,
analfabetos na sua maior parte? Que história do Outro estavam eles em condições
de ouvir e de compreender? Uma das tarefas coloniais mais evidentes residiu por
isso na identificação e no registo das histórias dinásticas, regionais ou até
nacionais. Podemos verificar contudo que o tratamento dado à história depende
sempre da maneira como são julgados e catalogados os povos.
Mas podemos acrescentar as diferenças que se verificam entre os
colonizadores: as histórias naturais e morais americanas, provindas dos
teólogos ou dos funcionários espanhóis, não encontram paralelo no discurso
português, a não ser possivelmente na China, onde seria mais um discurso
"jesuítico" exprimindo-se em português, do que um discurso
intrinsecamente português.
Ou seja, talvez se possa afirmar que os discursos históricos nacionais
só se banalizam após os regimes republicanos, revoluções inglesas do século
XVII, revoluções americana e francesa do século XVIII, substituindo a história
do soberano e da sua família pela história da nação. Georges Gusdorf fez notar
em tempos que a batalha de Valmy permitira que o general Kellermann mandassse
avançar as suas tropas, essencialmente formadas por voluntários, isto é, republicanos,
em nome da nação. O corte assinalado por Gusdorf é essencial, na medida em que
as tropas que tinham avançado em nome dos santos, lembremos Santiago e S. Jorge,
na Península, passam a agir em nome da nação.
Quer isto dizer que, na longa duração, as histórias nacionais se confundiam
ou eram substituídas pelas histórias das dinastias ou das famílias reais. Podemos
por isso salientar, sem o menor titubeio, que a experiência inglesa do século
XVII, é amplamente confirmada e reforçada pela emergência das repúblicas onde a
burguesia ocupa o lugar primacial. O que só permitia ver a nobreza, terá de
considerar a existência cada vez mais envolvente da burguesia, que arrasta sempre
consigo o "tiers-état",este "terceiro-estado"
que assegura a produção e o funcionamento eficaz do quotidiano». In Isabel Castro
Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX,
Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de
História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
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