Fala Yael
«Estamos a lembrar o meu Bat
Mitzvah, como seria se houvesse liberdade... Apesar de o ter celebrado há
quatro anos, tinha na altura 12 anos e mais um dia, recordo como se fosse hoje.
O Bat Mitsvah é a altura em que uma
mulher é considerada adulta e deve cumprir os mandamentos. Aliás, Bat Mitzvah significa ‘Filha do
Mandamento’ e nós, por motivos óbvios, festejámo-lo em casa e em família. Os
meninos festejam o seu Bar Mitzvah
aos 13 anos mais um dia. São considerados ‘Filhos do Mandamento’ e a partir daí
podem usar tefilin durante as orações
e ler a Torah na sinagoga, o que não
é o caso dos meus irmãos, nem de todos os judeus que se transformaram em
cristãos-novos, neste País, pois as sinagogas estão fechadas.
Lá fora tudo está muito mais silencioso que nos outros dias. Quase ninguém
sai à rua. Mesmo dentro de casa já se tornou hábito falar baixo, quase em
surdina, de certos assuntos, mas hoje, temos até medo de pensar.
O meu pai pensou fechar a loja depois da Minchá, (uma oração vespertina, instituída por Issac, uma prece que
deverá ser dita antes do anoitecer) mas como poderia ser mal interpretado, está
lá em baixo, de porta aberta, no meio de tecidos e outra mercadoria sem que
alguém atravesse a soleira. Taciturno e calado, queda-se pensativo, e, ao
almoço, comentou entre dentes que quem tinha tido juízo tinha sido a tia Ester
e o tio Barach, que tinham ido embora.
Não disse nada, mas pensei se o ‘ir embora’ da tia e do tio teria solucionado
alguma coisa porque os Visitadores andam por todo o lado. A menos que tenham
conseguido sair de Portugal, e, mesmo assim, dependeria do Reino de destino por
eles escolhido. Esta noite, bem de madrugada, os Visitadores vieram buscar
Moshe Ben Ami. Acordámos com as pancadas na porta e as exclamações de protesto
de Moshe no meio dos gritos lancinantes da mulher. Dos filhos nem se ouvia o
choro.
Ninguém saiu ou assomou à janela para espreitar. Creio que todos nós,
em pensamento, enviámos um adeus mudo a Moshe. Que Hashem (significa O Nome)
tenha piedade dele e que parta para a Esfera Celeste rapidamente e sem sofrer
muito às mãos da Inquisição (maldita).
Hoje, pela manhã, a medo, fomos visitar a mulher de Moshe. Está
destroçada sem saber que fazer. Os dois filhos mais velhos vão tomar conta do tingimento
dos tecidos que, por sorte, já tinham começado a aprender com o pai, mas sem
dúvida que agora a responsabilidade é maior e o medo também. Entre nós, cristãos-novos, vamos ter de os ajudar a superar esta crise
terrível que se abateu sobre eles. Não estamos livres de sermos os próximos.
Viemos há pouco da missa como todos os dias pela manhã, e como a maior
parte dos cristãos-novos. Estou sentada a costurar junto da minha mãe e ela
está a falar-me de Débora, Mãe de Israel. Diz-me que o cântico de Débora é um
dos mais antigos da Bíblia. É um canto profético onde se salienta a solidariedade
entre as tribos de Israel e onde se narra a vitória de duas mulheres, Débora e
Jael. Uma vitória assim não deve ser esquecida. Era uma época difícil, de
guerra. É uma história de resistência e organização. Era uma época em que não
era fácil cantar. Também hoje não é fácil canta, penso, tendo presente os dias que
vão correndo.
Pergunto a minha mãe se em Portugal sempre foi assim, e, com voz
monocórdica, ela falou-me da Inquisição (maldita) ou, como dizem os cristãos, O
Santo Ofício (maldita)». In Yael Bar Tolmei, Ana Bela Santos, Fala Yael,
Castelo de Vide. Os Judeus e a Inquisição, Orfeu, 2009, ISBN 978-2-87530-020-1.
Cortesia de Orfeu/JDACT