quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «Curioso é que os livros impressos em Portugal até à primeira metade do século XVI relacionam as navegações com a cruzada, a conquista e a procura do Preste João (o paraíso terrestre); não nos falam sobre as actividades mercantilistas…»


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In Memoriam de JLT

«Atlântico é o espaço da fronteira contra o inimigo islamizado e transforma-se na grande estrada comercial e do contacto dos povos.
  • ‘Ali houveram seu acordo de se irem lançar acerca do Cabo, porque poderia ser que algumas almadias vieram a eles, com que podessem haver fala, sequer por aceno, que aí não havia outro turgimão. E sendo tão acerca do Cabo como podia ser terço de legua, lançaram ancora e repousaram, como traziam ordenado; mas não estiveram assim muito tempo, quando logo de terra partiram dous barcos, em que vinham dez Guineus, os quaes logo começaram fazer direitamente sua viagem contra o navio, como homens que vinham de paz. E sendo acerca, fizeram sinal pedindo segurança, a qual lhes foi dada, e logo sem outra cautela entraram cinco deles na caravela, onde lhes Alvaro Fernandes fez fazer todo gasalhado que pode, mandando-lhes dar de comer e de beber, com toda outra boa companhia que lhes podesse ser feita; e d’aí partiram-se, com mostrança de grande contentamento; mas parece que as vontades al levariam concebido. E tanto que foram em terra, falaram com os outros seus naturaes toda a maneira que acharam, pelo qual lhes pareceu que ligeiramente os poderiam filhar; e com este proposito se partiram seis barcos, com XXV ou quarenta deles, aparelhados como homens que queriam pelejar; porem sendo acerca, houveram temor de se chegarem à caravela, estando assim arredados uma peça, sem ousarem de fazer nenhum cometimento. E vendo Alvaro Fernandes como não ousavam de chegar a ele, fez lançar seu batel fora; no qual mandou que se metessem oito homens, os mais prestes que para isso achou; e fez que o batel estivesse da outra parte da caravela, em tal guisa que não fosse visto dos contrarios, esperando que eles se chegassem mais acerca do navio’.
Curioso é que os livros impressos em Portugal até à primeira metade do século XVI relacionam as navegações com a cruzada, a conquista e a procura do Preste João (o paraíso terrestre); não nos falam sobre as actividades mercantilistas, como se estas fossem apenas secundiárias, os ‘suportes’ dos outros aspectos fundamentais da sociedade que ainda tem muito de medieval. A glória, dentro de um imaginário cristão, os portugueses estão no mundo para realizar a cidade de Deus, Tomé Pires di-lo em substância.
Claro que a passagem deste primeiro encontro corsário para outro mais comercial em que se perdeu o militarismo, foi devido à resistência dos africanos.
  • ‘E estes andando repairando para ver o que o tempo queria fazer, tornou-lhe ao norte, com o qual fizeram sua viagem caminho do Cabo Verde, onde já o outro ano fora Dinis Dias. E andaram tanto até que chegaram a ele todalas caravelas, afora a de Rodrigueanes de Travaços que perdeu a conserva e fez depois a viagem que adiante será contado. E sendo as cinco em direito do Cabo, viram uma ilha, na qual sairam por ver se era povoada, e acharam que era erma: somente acharam aí grande multidão de cabras, de que tomaram algumas para seu refresco, e disseram que não havia em elas diferença das desta terra, somente nas orelhas que tinham de maior grandeza. Aí tomaram a agua e seguiram mais avante, até que acharam outra ilha, na qual viram peles frescas de cabras, e outras cousas por que conheceram que já outras caravelas seguiram avante; e por certificação sua, acharam na arvores entalhadas as armas do Infante, e isso mesmo letras em que estava o seu moto. Por certo eu duvido,  diz o autor, se depois do grande poderia de Alexandre e de Cesar, foi algum principe no mundo que tão longe de sua terra mandasse poer os malhões de sua conquista! E por estes sinaes que assim acharam aqueles das caravelas em aquelas arvores, conheceram que já algumas outras seguiram avante; e porem acordaram de se tornarem; e seguindo ao diante, souberam que a caravela de João Gonçalves Zarco, capitão da ilha da Madeira, fora aquela que já seguia diante. E porque em terra eram tantos daqueles guineus, que por nenhum modo não podiam sair em terra de dia nem de noite, quis Gomes Pires mostrar que queria sair entre eles por bem; e por na terra um bolo e um espelho e uma folha de papel, no qual dobuxou uma cruz. E eles quando vieram e acharam assim aquelas cousas, britaram o bôlo e lançaram-no a longe, e com as azagaias tiraram ao espelho, até que o britaram em muitas peças, e romperam o papel, mostrando que de nenhuma destas cousas não curavam.
[…]
continua

In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT