sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «Não é verdade que a vida seria triste, aborrecida, insípida, modesta, se não tivesse o condimento do prazer, da folia e da loucura?»


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Fala a Loucura
«E porque não heide falar abertamente convosco, como é o meu costume? Pergunto: é com a cabeça, com a face, com o peito, com as orelhas, com as partes do corpo denominadas honestas, que os deuses e os homens procriam? Não é.
A propagatriz do género humano é uma parte do corpo tão estulta e tão ridícula, que não pode ser nomeada sem riso. Tal é a fonte sagrada de que flui para todos a vida, muito mais do que do ‘quatérnio’ pictagórico.
Que varão, pergunto eu, curvaria o pescoço perante o jugo do matrimónio se, à maneira dos sapientes, calculasse primeiro os inconvenientes desta vida? E que mulher consentiria em aproximar-se de um homem se meditasse nas dores e nos perigos do parto e nos trabalhos da educação da criança? Se deveis a vida ao conjunto, deveis o conjugato à minha servente Anoia, e reparai agora em quanto me deveis também.
Que mulher já experiente quereria repetir se não estivesse com a Leté, que aqui vedes? Nem a própria Vénus, diga Lucrécio o que quiser, teria um poder tão grande se lhe faltasse o nosso auxílio.
Dos meus divertimentos tontos e ridículos provêm os filósofos muito sérios, a quem sucederam agora aqueles que o vulgo denomina monges; e também os reis cobertos de púrpura, os sacerdotes pios, e os santíssimos pontífices. Mais ainda, a reunião de todas as divindades poéticas, inumeráveis, cuja turba excede a capacidade do Olimpo, que é espaçosíssimo.

Mas de pouco valeria apresentar-me como seminário e fonte da vida se não vos demonstrasse também que me deveis todos os prazeres da existência. Que seria a vida, que poderia dizer-se da vida, se lhe faltasse a voluptuosidade? Aplaudis, meus amigos? Já sabia que nenhum de vós é bastante sábio, ou bastante louco, digamos bastante douto, para ter outra opinião. Nem mesmo os estóicos desprezam a volúpia; e se em público a escarnecem, dissimulam para assim afastarem os outros e gozarem sossegadamente. Mas dizei-me por Jove: Não é verdade que a vida seria triste, aborrecida, insípida, modesta, se não tivesse o condimento do prazer, da folia e da loucura? Posso invocar o testemunho idóneo d'e Sófocles, nunca por demais louvado, que me fez o mais belo elogio:
  • Quanto maior for a sabedoria, menos feliz a vida.
Mas vamos ao fundo da questão...
Quem ignora que a primeira é a mais grata e deliciosa idade da vida humana?
A prudente Natureza concedeu esse dom aos recém-nascidos para eles assim recompensarem os trabalhos e os cuidados dos que os educam. À infância, que não fala, segue-se a puerícia que a todos agrada, que encanta pela candura, que todos solicitamente ajudam de mãos estendidas». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT