segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O Bispo Negro e o conflito com o papa. A Épica Medieval Portuguesa. «O conflito entre o rei e o clero mais o papa nada tem de extraordinário nesta época. Era antes coisa normal. A arma da excomunhão ou do interdito que suspendia o ritual religioso em que assentava toda a prática social medieval»



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«Uma das partes mais surpreendentes do nosso relato épico é a dos conflitos de Afonso Henriques com o bispo de Coimbra e com o papa, na qual se encontra o justamente célebre episódio do ‘bispo Negro’, que Herculano romanceou numa das suas Lendas e Narrativas, atraído pelo pitoresco e insólito, tão caro aos românticos. Esta parte é shocking para historiógrafos de formação convencional e, especialmente, eclesiástica. O pe. Gonzaga Azevedo considera-a como ‘uma tradição caluniosa que durante séculos desonrou a memória do nosso monarca’, etc.
O conflito entre o rei e o clero mais o papa nada tem de extraordinário nesta época. Era antes coisa normal. A arma da excomunhão ou do interdito que suspendia o ritual religioso em que assentava toda a prática social medieval, era a mais poderosa de que dispunha o clero e provocava violentas reacções da parte do poder civil, porque tocava nos próprios fundamentos culturais da sociedade. São bem conhecidos os embates de Sancho I, filho de Afonso Henriques, com o bispo do Porto e com o próprio papa. Este queixou-se de que tinha recebido do rei uma carta insultuosa; quanto ao bispo, o rei chegou a saquear-lhe e a demolir-lhe as casas e finalmente prendeu-o. Uma das causas do litígio na época de Sancho era o ouro de que a Santa Sé se julgava credora e que o rei não queria pagar. O episódio do conflito com o clero e especialmente com o cardeal legado, quase parece uma simplificação lendária desse aspecto do reinado do sucessor do herói da tradição épica.
Quanto ao à vontade e presteza com que o rei passa a vias de facto, agarrando o cardeal pelo cabeção e levantando a espada contra ele, coisa que já parecia inverosímil aos historiógrafos do século XVI, é um género de comportamento ainda atestado na Crónica de D. Pedro por Fernão Lopes: este rei aprestou-se a açoitar pessoalmente o bispo do Porto, e só o não fez porque os conselheiros intervieram no último momento, quando o bispo já estava despido para receber o látego. Os reis dos séculos XII e XIII, guerreiros profissionais, não eram certamente mais inibidos.
Não há provas de um conflito grave de Afonso Henriques com a Santa Sé, cuja protecção o rei sempre procurou procurou captar, para se defender contra o rei de Leão e Castela. Mas o papa só com muita parcimónia dispensou as suas graças a este candidato a rei que durante muito tempo foi Afonso Henriques; mesmo depois de lhe ter aceite o censo e a vassalagem continuou oficialmente a atribuir-lhe o título de dux, longos anos depois de Afonso Henriques se intitular a si próprio rex. Não é impossível que por causa disto tenha havido desaguisados entre as duas partes, embora disso não constem documentos.
Mas o mais extraordinário, o que é realmente singular, é o aparecimento desse ‘negro’ que foi bispo por ordem do rei. Donde surge, como se explica tal personagem, que não tem paralelo nas crónicas e tradições desta época?» In António José Saraiva, A Épica Medieval Portuguesa, Instituto Camões, Lisboa, Livraria Bertrand, 1979, ISBN 972-566-161-3.

Cortesia de I. Camões/JDACT