«Uma das partes mais surpreendentes do nosso relato épico é a dos
conflitos de Afonso Henriques com o bispo de Coimbra e com o papa, na qual se
encontra o justamente célebre episódio do ‘bispo Negro’, que Herculano
romanceou numa das suas Lendas e
Narrativas, atraído pelo pitoresco e insólito, tão caro aos românticos. Esta
parte é shocking para historiógrafos
de formação convencional e, especialmente, eclesiástica. O pe. Gonzaga Azevedo
considera-a como ‘uma tradição caluniosa que durante séculos desonrou a memória
do nosso monarca’, etc.
O conflito entre o rei e o clero mais o papa nada tem de extraordinário
nesta época. Era antes coisa normal. A arma da excomunhão ou do interdito que
suspendia o ritual religioso em que assentava toda a prática social medieval,
era a mais poderosa de que dispunha o clero e provocava violentas reacções da
parte do poder civil, porque tocava nos próprios fundamentos culturais da
sociedade. São bem conhecidos os embates de Sancho I, filho de Afonso
Henriques, com o bispo do Porto e com o próprio papa. Este queixou-se de que
tinha recebido do rei uma carta insultuosa; quanto ao bispo, o rei chegou a saquear-lhe
e a demolir-lhe as casas e finalmente prendeu-o. Uma das causas do litígio na
época de Sancho era o ouro de que a Santa Sé se julgava credora e que o rei não
queria pagar. O episódio do conflito com o clero e especialmente com o cardeal
legado, quase parece uma simplificação lendária desse aspecto do reinado do
sucessor do herói da tradição épica.
Quanto ao à vontade e presteza com que o rei passa a vias de facto,
agarrando o cardeal pelo cabeção e levantando a espada contra ele, coisa que já
parecia inverosímil aos historiógrafos do século XVI, é um género de
comportamento ainda atestado na Crónica
de D. Pedro por Fernão Lopes: este rei aprestou-se a açoitar pessoalmente o
bispo do Porto, e só o não fez porque os conselheiros intervieram no último
momento, quando o bispo já estava despido para receber o látego. Os reis dos
séculos XII e XIII, guerreiros profissionais, não eram certamente mais
inibidos.
Não há provas de um conflito grave de Afonso Henriques com a Santa Sé,
cuja protecção o rei sempre procurou procurou captar, para se defender contra o
rei de Leão e Castela. Mas o papa só com muita parcimónia dispensou as suas
graças a este candidato a rei que durante muito tempo foi Afonso Henriques;
mesmo depois de lhe ter aceite o censo e a vassalagem continuou oficialmente a
atribuir-lhe o título de dux, longos
anos depois de Afonso Henriques se intitular a si próprio rex. Não é impossível que por causa disto tenha havido desaguisados
entre as duas partes, embora disso não constem documentos.
Mas o mais extraordinário, o que é realmente singular, é o aparecimento
desse ‘negro’ que foi bispo por ordem do rei. Donde surge, como se explica tal
personagem, que não tem paralelo nas crónicas e tradições desta época?» In António
José Saraiva, A Épica Medieval Portuguesa, Instituto Camões, Lisboa, Livraria
Bertrand, 1979, ISBN 972-566-161-3.
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