terça-feira, 11 de setembro de 2012

A Arte de Furtar. Literatura Panfletária e Satírica. Manuel da Costa. António José Saraiva e Óscar Lopes. «Pelo contrário, a alta burguesia e a nobreza, ainda que sem individualização de pessoas, saem (!?) a escorrer sangue deste cadastro de extorsões e violências que é impossível resumir…»


Cortesia de wikipedia e jdact

(continuação)
«Todavia, insistimos, quaisquer que sejam as interpolações tardias, não há dúvida de que o essencial do livro exprime as preocupações do tempo de João IV encaradas sob o ponto de vista dominante do clero. É frequente a observação de que tais ou tais desmandos se evitariam, caso a incumbência em questão fosse desempenhada por ‘religioso’. Há todo um capítulo (VII) a enumerar os prejuízos que o ‘regime filipino’ acarretara ao clero. Pelo contrário, a alta burguesia e a nobreza, ainda que sem individualização de pessoas, saem a escorrer sangue deste cadastro de extorsões e violências que é impossível resumir.
Considerando o conteúdo do livro ao nível da simples descrição de factos isolados e típicos dos mais variados comportamentos sociais, o seu realismo supera de muito o melhor dos ‘Apólogos Dialogais’, e possivelmente nenhum panfleto da nossa literatura o iguala. Lá surgem, entre outros, casos de ‘estanco’, açambarcamento e monopólio, de géneros de venda, importação ou exportação, na mais diversa escala; casos de especulação com as ‘rendas’ ou títulos de dívida pública, como baixas de cotação artificialmente provocadas e seguidas da sua arrematação pelos próprios intermediários oficiais; casos de aquisição pela Coroa, mediante suborno, de cavalos inutilizados, de bacalhau estragado e de outras mercadorias desvalorizadas, para fornecimento ao exército; casos de alistamento para a tropa ou para a marinha em que se registam contingentes imaginários, depois imaginariamente dispersos, para justificar escuros manejos de fundos, e em que, além disso, a incorporação ou não incorporação forçada de mancebos depende só do preço do suborno, reduzindo numerosas famílias à miséria ou à hipoteca; malversações fiscais; acumulações ou excessivas ramificações burocráticas; sonegação, por parte da nobreza, de bens da Coroa, que as dificuldades políticas da Restauração não permitem recuperar; cursos universitários completados, às dezenas, por interposta pessoa; simples desfalques ou vigarices, em todos os andares do funcionalismo e da vida comercial; viciação ou atraso propositado dos despachos oficiais ou dos processos judiciais; etc., etc.» In Fundação Calouste Gulbenkian.

Cortesia de FC Gulbenkian/JDACT