(continuação)
«Todavia, insistimos, quaisquer que sejam as interpolações tardias,
não há dúvida de que o essencial do livro exprime as preocupações do tempo de João
IV encaradas sob o ponto de vista dominante do clero. É frequente a observação
de que tais ou tais desmandos se evitariam, caso a incumbência em questão fosse
desempenhada por ‘religioso’. Há todo um capítulo (VII) a enumerar os prejuízos
que o ‘regime filipino’ acarretara ao clero. Pelo contrário, a alta burguesia e
a nobreza, ainda que sem individualização de pessoas, saem a escorrer sangue
deste cadastro de extorsões e violências que é impossível resumir.
Considerando o conteúdo do livro ao nível da simples
descrição de factos isolados e típicos dos mais variados comportamentos
sociais, o seu realismo supera de muito o melhor dos ‘Apólogos Dialogais’, e
possivelmente nenhum panfleto da nossa literatura o iguala. Lá surgem, entre
outros, casos de ‘estanco’, açambarcamento e monopólio, de géneros de venda,
importação ou exportação, na mais diversa escala; casos de especulação com as ‘rendas’
ou títulos de dívida pública, como baixas de cotação artificialmente provocadas
e seguidas da sua arrematação pelos próprios intermediários oficiais; casos de
aquisição pela Coroa, mediante suborno, de cavalos inutilizados, de bacalhau
estragado e de outras mercadorias desvalorizadas, para fornecimento ao
exército; casos de alistamento para a tropa ou para a marinha em que se
registam contingentes imaginários, depois imaginariamente dispersos, para justificar
escuros manejos de fundos, e em que, além disso, a incorporação ou não
incorporação forçada de mancebos depende só do preço do suborno, reduzindo
numerosas famílias à miséria ou à hipoteca; malversações fiscais; acumulações
ou excessivas ramificações burocráticas; sonegação, por parte da nobreza, de
bens da Coroa, que as dificuldades políticas da Restauração não permitem
recuperar; cursos universitários completados, às dezenas, por interposta
pessoa; simples desfalques ou vigarices, em todos os andares do funcionalismo e
da vida comercial; viciação ou atraso propositado dos despachos oficiais ou dos
processos judiciais; etc., etc.» In Fundação Calouste Gulbenkian.
Cortesia de FC Gulbenkian/JDACT