terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Paraíso Triste. O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial. Maria João Martins. «As dificuldades eram reais e sentiam-se nos principais mercados da cidade, como no resto do país. Na lota, a quantidade de peixe diminuía. Não porque os peixes tenham demandado águas menos perigosas, mas porque a escassez de combustível para os barcos levava os pescadores a permanecer mais tempo em terra»


E a Guerra aqui tão perto. Filme 'Casablanca'
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E a Guerra aqui tão perto
«Em Junho de 1940, Portugal descobria que a guerra não era uma preocupação longínqua para povos de estranhas latitudes. Nesse mês, a França perdia em casa a sua própria batalha e os alemães, de estandartes erguidos, entravam, marciais e orgulhosos, na cidade de Paris. Depois dessa vitória que Bismarck não ousara imaginar, quem garantiria que os tanques alemães não se decidissem a transpor os Pirenéus e a partir à conquista da Península Ibérica? Quem garantiria, depois, que as posições alemãs em Portugal e Espanha não viessem a ser violentamente bombardeadas pela aviação aliada?

A estas conjecturas quotidianas associaram-se outros factores de perturbação da normal existência ‘alfacinha’, os milhares de refugiados que, espoliados de tudo, passaram por Lisboa, rumo às Américas, sem vontade nem tempo para apreciar as vistas, a vasta propaganda estrangeira distribuída aos habitantes da cidade, os problemas suscitados pela escassez de géneros tão essenciais como o pão, a carne, o peixe, o café e, claro está, o azeite para temperar o ‘amigo’ bacalhau.
Distribuíam-se à população folhetos com indicações sobre o que fazer em caso de ataque súbito, organizavam-se exercícios com alarmes antiaéreos, treinavam-se operações de evacuação e ensinavam-se as pessoas a calafetar os vidros das janelas com tiras de papel.
O curso da Guerra não era, com efeito, de molde a tranquilizar o cidadão. Mesmo com o país convictamente neutral, vários navios mercantes foram atacados no alto mar, nomeadamente por submarinos alemães. A 5 de Julho, o bacalhoeiro português ‘Maria da Glória’, oriundo de Aveiro, foi afundado a tiros de canhão por um submarino ‘sem bandeira’ (Século Ilustrado, 10Julho1940). À tripulação atacada não restou outra alternativa senão o recurso aos frágeis doris com que o ‘Maria da Glória’ fora dotado.
Lisboa ia ao cinema, ao teatro, à praia, à Feira Popular e às compras mas sabia que não lhe era possível viver numa redoma de vidro.

As dificuldades de abastecimento
As dificuldades de abastecimento de bens essenciais, desencadeadas pela Guerra, à imagem do que já acontecera em 1914 / 18, tornaram-se quotidianas. Os lisboetas habituaram-se a viver com elas e as conversas ressentiam-se disso mesmo.
  • ‘- Sabes o que diz o bacalhau às batatas? - ?... - Ai que saudades, ai, ai...’ Anedota publicada em o Século Ilustrado, 14Janeiro1944.
O anedotário começaria a brincar com estas novas situações, como sempre acontece quando a crise se instala na vida de todos os dias. Sobre o problema do azeite que não chega para as necessidades de um povo particularmente apreciador do bacalhau com batatas, o Século Ilustrado publicava, em 4 de Julho de 1942, esta piada:
  • ‘- Vês aquele tipo? E um felizardo. - Felizardo, porquê? - Porque tem uma nódoa de azeite no casacão’.
Mas esta fleuma não desdramatiza a situação. O corte radical que a Guerra infligiu nas exportações, incluindo as das nossas colónias, pôs a nu as imensas lacunas e insuficiências da produção agrícola, pecuária e industrial portuguesa. As dificuldades eram reais e sentiam-se nos principais mercados da cidade, como no resto do país. Na lota, a quantidade de peixe diminuía. Não porque os peixes tenham demandado águas menos perigosas, claro está, mas porque a escassez de combustível para os barcos levava os pescadores a permanecer mais tempo em terra.
A inflação crescia mais do que os pés-de-meia familiares podiam suportar e a falta de coordenação governamental foi, durante a maior parte do conflito, um factor favorável ao agravamento do problema. A 3 de Agosto de 1944, o jornal Diário de Lisboa dava conta de que, nos mercados da cidade, não havia quem chegasse à fruta.
  • ‘Só graças aos vendedores ambulantes, escrevia-se nessa edição, é que se pode comprar fruta mais barata. Nos outros mercados é proibitiva’.
A crise remontava a 1940, ano em que a França caiu na mão dos boches (malditos) e a drôle de guerre cedeu lugar ao conflito mais mortífero da Historia. Os bens essenciais tornaram-se objecto de especulação, roubo e açambarcamento. A 31 de Agosto de 1940, por exemplo, os jornais noticiavam o roubo de um carregamento de açúcar pertencente a um navio grego que, tempos antes, sofrera um incêndio no Tejo». In Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.

Uma visão rara. Lisboa com neve, em Janeiro de 1945.
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Cortesia de Vega/JDACT