E a Guerra aqui tão perto
«Em Junho de 1940, Portugal descobria que a guerra não era uma preocupação
longínqua para povos de estranhas latitudes. Nesse mês, a França perdia em casa
a sua própria batalha e os alemães, de estandartes erguidos, entravam, marciais
e orgulhosos, na cidade de Paris. Depois dessa vitória que Bismarck não ousara
imaginar, quem garantiria que os tanques alemães não se decidissem a transpor
os Pirenéus e a partir à conquista da Península Ibérica? Quem garantiria, depois,
que as posições alemãs em Portugal e Espanha não viessem a ser violentamente
bombardeadas pela aviação aliada?
A estas conjecturas quotidianas associaram-se outros factores de
perturbação da normal existência ‘alfacinha’, os milhares de refugiados que,
espoliados de tudo, passaram por Lisboa, rumo às Américas, sem vontade nem
tempo para apreciar as vistas, a vasta propaganda estrangeira distribuída aos
habitantes da cidade, os problemas suscitados pela escassez de géneros tão
essenciais como o pão, a carne, o peixe, o café e, claro está, o azeite para
temperar o ‘amigo’ bacalhau.
Distribuíam-se à população folhetos com indicações sobre o que fazer em
caso de ataque súbito, organizavam-se exercícios com alarmes antiaéreos,
treinavam-se operações de evacuação e ensinavam-se as pessoas a calafetar os
vidros das janelas com tiras de papel.
O curso da Guerra não era, com efeito, de molde a tranquilizar o
cidadão. Mesmo com o país convictamente neutral, vários navios mercantes foram
atacados no alto mar, nomeadamente por submarinos alemães. A 5 de Julho, o
bacalhoeiro português ‘Maria da Glória’, oriundo de Aveiro, foi afundado a
tiros de canhão por um submarino ‘sem bandeira’ (Século Ilustrado, 10Julho1940).
À tripulação atacada não restou outra alternativa senão o recurso aos frágeis doris com que o ‘Maria da Glória’ fora dotado.
Lisboa ia ao cinema, ao teatro, à praia, à Feira Popular e às compras
mas sabia que não lhe era possível viver numa redoma de vidro.
As dificuldades de abastecimento
As dificuldades de abastecimento de bens essenciais, desencadeadas pela
Guerra, à imagem do que já acontecera em 1914 / 18, tornaram-se quotidianas. Os
lisboetas habituaram-se a viver com elas e as conversas ressentiam-se disso
mesmo.
- ‘- Sabes o que diz o bacalhau às batatas? - ?... - Ai que saudades, ai, ai...’ Anedota publicada em o Século Ilustrado, 14Janeiro1944.
O anedotário começaria a brincar com estas novas situações, como sempre
acontece quando a crise se instala na vida de todos os dias. Sobre o problema
do azeite que não chega para as necessidades de um povo particularmente apreciador
do bacalhau com batatas, o Século Ilustrado publicava, em 4 de Julho de 1942,
esta piada:
- ‘- Vês aquele tipo? E um felizardo. - Felizardo, porquê? - Porque tem uma nódoa de azeite no casacão’.
Mas esta fleuma não desdramatiza a situação. O corte radical que a
Guerra infligiu nas exportações, incluindo as das nossas colónias, pôs a nu as
imensas lacunas e insuficiências da produção agrícola, pecuária e industrial
portuguesa. As dificuldades eram reais e sentiam-se nos principais mercados da
cidade, como no resto do país. Na lota, a quantidade de peixe diminuía. Não
porque os peixes tenham demandado águas menos perigosas, claro está, mas porque
a escassez de combustível para os barcos levava os pescadores a permanecer mais
tempo em terra.
A inflação crescia mais do que os pés-de-meia
familiares podiam suportar e a falta de coordenação governamental foi, durante
a maior parte do conflito, um factor favorável ao agravamento do problema. A 3
de Agosto de 1944, o jornal Diário de
Lisboa dava conta de que, nos mercados da cidade, não havia quem chegasse à
fruta.
- ‘Só graças aos vendedores ambulantes, escrevia-se nessa edição, é que se pode comprar fruta mais barata. Nos outros mercados é proibitiva’.
A crise remontava a 1940, ano em que a França caiu na mão dos boches (malditos) e a drôle de guerre cedeu lugar ao conflito
mais mortífero da Historia. Os bens essenciais tornaram-se objecto de
especulação, roubo e açambarcamento. A 31 de Agosto de 1940, por exemplo, os
jornais noticiavam o roubo de um carregamento de açúcar pertencente a um navio
grego que, tempos antes, sofrera um incêndio no Tejo». In Maria João Martins, O
Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Vega,
Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.
Uma visão rara. Lisboa com neve, em Janeiro de 1945.
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Cortesia de Vega/JDACT