As Doutrinas Filosóficas de Antero
‘Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX’
«Em três números sucessivos da Revista
de Portugal, de Janeiro, Fevereiro e Março, de 1890, apresenta Antero de
Quental o mais completo e sistemático dos seus estudos filosóficos sob o título
de ‘Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX’.
Neste trabalho, Antero apresenta os seus pontos de vista sobre os mais
importantes problemas filosóficos, como sejam o significado e valor da
filosofia, o conhecimento científico e sua relação com a filosofia ou
pensamento metafísico (envolvendo uma teoria da ciência e da experiência), e o
problema da Liberdade e Deus.
A filosofia é eterna como o pensamento humano, representa num fieri incessante o que há de absoluto no
pensamento humano e o que há de relativo na consciência que o pensamento humano
tem de si mesmo. Não pode, pois, esperar-se dela uma verdade total e definitiva
que acarretaria, aliás se possível fosse, a imobilidade ou morte do pensamento
humano.
A sua verdade, sem ser total ou absoluta, é simplesmente simbólica,
pois que a filosofia ‘é a equação do pensamento e da realidade numa dada
fase do desenvolvimento daquele e num dado período de conhecimento desta, é o
equilíbrio momentâneo entre a reflexão e a experiência; a adaptação possível em
cada momento histórico (da história, da ciência e do pensamento) dos factos
conhecidos às ideias directoras da razão, e a definição correlativa dessas
ideias, não por esses factos, mas em vista deles’.
É por isso que cada período histórico tem a sua filosofia e os
sistemas, repetindo certos tipos fundamentais, o fazem diversamente conforme as
épocas, de acordo com a identidade da razão em todos os tempos e a variação
contínua de experiência. Por isso mesmo todos os sistemas duma época apresentam
um certo ar de família. Será, pois, possível uma síntese de todos os sistemas
duma época, dando assim a sua essência filosófica?
A história mostra-nos apenas uma penetração recíproca dos sistemas, de modo
que em certos períodos aparece um sincretismo de todas as doutrinas, como no
período alexandrino e na Suma de
Tomás de Aquino. E hoje, ao fim de quatro séculos de elaboração do pensamento
moderno, parece dar-se o mesmo. A história mostra-nos, com efeito, algumas
noções capitais comuns aos sistemas e penetrando, até, todas as formas da espiritualidade
moderna. São as noções de força, lei,
imanência ou espontaneidade e desenvolvimento.
Por estas noções se distingue essencialmente o pensamento moderno do
antigo: se este nos dá a realidade como em nação do ser em si absoluto e só
verdadeiramente existente, o pensamento moderno concebe a realidade como um fieri incessante dum ser em si só
potencialmente existente e que só realizando-se atinge a plenitude. Um ia
buscar a unidade fora do Universo, o outro encontra a unidade somente na
própria diversidade.
‘O pensamento antigo fazia do universo uma máquina, cuja estrutura
obedecia a um plano preconcebido: o pensamento moderno faz do Universo um ser
vivo, cuja forma de actividade não obedece senão às tendências espontâneas do
seu próprio desenvolvimento’.
O pensamento antigo fragmentava a realidade em divisões ou categorias,
géneros ou espécies, substâncias incomunicáveis, onde cada categoria de seres
se isolava sem influir nos outros; o pensamento moderno vê na realidade o acto
único duma substância omnímoda.
Do alvor da Renascença a Descartes, Espinosa e Leibniz, as noções de
força e imanência vão-se afirmando. O século XVIII dará a ideia de desenvolvimento, consequência e
complemento natural das ideias de força
e imanência.
E com a ideia de desenvolvimento aprofunda-se a nossa visão do
Universo.
- ‘O Universo aparece-nos agora não já somente como o grande ser autónomo e eternamente activo, mas como o ser de ilimitada e infinita expansão, tirando de si mesmo, da sua inesgotável virtualidade, de momento para momento, criações cada vez mais completas, mais ricas de energia, vida e expressão, envolvendo-se e desdobrando-se, em voltas cada vez mais largas e sinuosas, na espiral sem termo do seu maravilhoso desenvolvimento. Divino e real ao mesmo tempo, manifesta a si mesmo a sua essência prodigiosa, contemplando-se numa infinidade de espelhos e em cada um sob um aspecto diverso, desenrolando a sua eterna existência numa série de panoramas desde as forças elementares e puramente mecânicas, às mil afinidades da matéria bruta, até ao instinto que sonha, à inteligência que observa e compara, à razão que ordena, ao sentimento que fecunda, até, à contemplação e à virtude dos sábios e dos santos’.
Mas o século XVIII não deu somente esta fecunda noção de
desenvolvimento, foi também o grande século em que pela voz de Kant o
pensamento se interrogou sobre a legitimidade e valor de seus direitos». In
Leonardo Coimbra, O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, Guimarães
Editores, Lisboa, 1991, ISBN 972-665-372-X.
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT