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«A cerimónia de assinatura do acordo da nossa adesão à Comunidade
Europeia, ao lado do velho companheiro castelhano, celebrada no mosteiro dos
Jerónimos em Junho de 1985, tinha, assim, o valor suplementar de se abrir como
um símbolo maior, tanto toponímico como propriamente semiótico, da nossa vasta
e dramática aventura como povo e destino, já que dali perto saíram as naus de
Gama para a Índia, e ainda porque aquele mesmo templo cristão exprimia, na sua
estética e riqueza decorativa, toda uma saga feita de viagem, miragem, flora
oriental, aventura, naufrágio, emigração, lonjura, perda, edificação, ideal e
calvário...
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NOTA: Vasco da Gama (Sines, 1450-Cochim,1526), ao qual Camões chamava ‘forte
Capitão’ e novo Eneias (Lus.,I,44), ‘ilustre
Gama’ que contou ao rei de Melinde a história pátria como uma ‘grã genealogio’ da
nossa gente cujos feitos militares e varões o bardo queria cantar, não é o
único herói dessa épica, porque nesse caso esta se chamaria A Gameida, em vez de Os
Lusíadas: o poema quer, sim, celebrar a gesta total de todo um povo,
desde o seu berço até à viagem para a Índia, a ufania de se ser lusitano, o ‘peito
ilustre lusitano’ ao qual obedecem as divindades do mar e da guerra ("Neptuno
e Marte", I, 3). Quando se celebrou o V Centenário do início da viagem de
Lisboa a Calecut, uma mal inspirada Comissão dos Descobrimentos Portugueses, em
vez de homenagear a memória deste homem que fora esforçadamente cumpridor de
uma missão confiada pela coroa portuguesa, deste nauta, recto e austero cujo
nome ficou universalmente ligado à descoberta do caminho marítimo para a Índia,
e, por conseguinte, ao primeiro grande contacto civilizacional por mar entre a
Europa e a Ásia, nesse final medievo, independentemente das observações
criticas mais justas que se possam fazer sobre o imperialismo luso ou o das
demais nações europeias nos começos da Renascença, achou preferível, como que
movida por um insuperável complexo de culpa engendrado, porventura, pelas
recentes guerras colonialistas por nós feitas, mandar vir da Índia um
historiador local, Sanjay Subrahmanyam chamado, autor de um espesso e
discutível panfleto de 368 páginas contra o navegador português, The Career and Legend of Vasco da Gama, Londres,
Cambridge University Press, que veio a Lisboa para, na Sociedade de Geografia, diante
de ministros do governo e de autoridades civis e religiosas, permitir-se
insultar a figura e o feito do comandante da viagem de Lisboa a Calecut. No
entendimento deste cronista movido por uma clara ojeriza anti-europeia, além de
faccioso, pouco documentado e nada conhecedor da cultura e historiografia lusas,
para ele, Antero e Oliveira Martins seriam ‘republicanos’ e V. Magalhães
Godinho um ‘neo-marxista’... O capitão da viagem de 1497 - 99 seria um homem
cruel, incapaz de compreender o contexto cultural no qual se movia ao chegar
àquelas paragens asiáticas, um nome afinal sem grande valia ou interesse para
os indianos de ontem e de hoje (cf. reportagem de de Isabel Salema, no jornal
Público, em 9-VII-97). Lê-se numa passagem deste livro antiportuguês, por
exemplo: ‘A historiografia portuguesa, durante muito tempo dominada por um
nacionalismo nostálgico, tendeu a ignorar até que ponto a elite desse país
estava dividida na viragem do século XVI pela questão da expansão marítima’.
Agora, sim, terminada a Viagem, estávamos de regresso à Ítaca essencial,
não já esse estreito e acanhado rincão do sudoeste europeu, mas ao continente
cujo habitat era, essencialmente, o
nosso, como europeus que nunca tínhamos deixado de ser, mesmo passando além de
Taprobana, mesmo sonhando Brasis e outras miragens que iriam naufragando como
fudo o mais que se desmoronou ao longo de três Impérios feitos, depois
perdidos, ganhos porém no terem sido por nós plantados, como esses padrões que
íamos deixando nas costas de um universo visitado na delonga da jornada para
esse ‘novo reino’ que em vão tentáramos sublimar.
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NOTA: No mesmo livro, o mesmo indiano, em má hora chamado a Portugal
para nos difamar, mostrava um Gama ganancioso, cruel, pouco culto, paranóico e
criminoso, não hesitando em enforcar habitantes da Índia e bombardear Calecute quando
achou que a esquadra lusa corria perigo, em suma, um assassino… No mesmo jornal,
o infeliz patrocinador da vinda do indiano a Lisboa tentava, de modo confuso e
atrapalhado, justificar a crítica de Subrahmanyan... A tanto pode chegar a má
consciência histórica quando lhe cabe, como aquele triste incidente,
debruçar-se sobre o passado português! Em síntese, diremos que, tentando traçar
uma biografia de Vasco da Gama, Subrahmanyan constrói um retrato muito parcial
do grande capitão luso, sem tomar em conta os valores da época em que este
viveu, nem tão pouco a corrente crítica que, desde o século XV (e, depois, no
século XVI, com todos os seus ‘fumos da Índia’) aos séculos XIX e XX (Alexandre
Herculano, Oliveira Martins, Alberto Sampaio, António Sérgio, Duarte Leite, V.
M. Godinho, etc.) sempre se afirmou como não-nacionalista, anti-nacionalista e,
mais em geral, verberadora da ‘glória de mandar’ a que Camões já se referia no
episódio do Velho do Restelo. De nada disto cura ou sabe o errático panfletário
indiano.
In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo
nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.
Cortesia da CM de Cascais/JDACT