sábado, 29 de setembro de 2012

Serões na Aldeia. Poesia. Política. «Revolta é ter-se nascido sem descobrir o sentido do que nos há-de matar. Rebeldia é o que põe na nossa mão um punhal para vibrar naquela morte que nos mata devagar. E coroados de apupos teremos a vitória de nos rirmos do mundo num leito vazio»


Pintura de Maluda
jdact

Do Sentimento Trágico da Vida
Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia, in “Poemas” (1955)

Pintura de Maluda
jdact

Caminharemos de Olhos Deslumbrados
Caminharemos de olhos deslumbrados
e braços estendidos
e nos lábios incertos levaremos
o gosto a sol e a sangue dos sentidos.

Onde estivermos, há-de estar o vento
cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
dos nossos jovens dentes devorando
os frutos proibidos.

No ritual do verão descobriremos
o segredo dos deuses interditos
e marcados na testa exaltaremos
estátuas de heróis castrados e malditos.

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
dos amantes com cio,
impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
unge os nossos cabelos com o teu desvario!

Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
fustiga-nos os membros como um látego doido,
numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.

Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
atapeta de flores a estrada que seguimos
e carrega de aromas a brisa que nos toca.

Nus e ensanguentados dançaremos a glória
dos nossos esponsais eternos com o estio
e coroados de apupos teremos a vitória
de nos rirmos do mundo num leito vazio.
Ary dos Santos, in “Liturgia do Sangue”

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