quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Vida Ignorada de Camões. Uma História que o Tempo Censurou. José Hermano Saraiva. «Ora morto ele em tanta miséria, que o enterraram na Igreja de Santa Ana desta cidade, de modo que custou muito trabalho atinarem com o lugar de sua sepultura quando um fidalgo português, que só neste reino deu o primeiro…»


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O que se sabe e não sabe da vida de Camões
A mais antiga biografia de Camões. Que queria provar Pedro Mariz? Os informes de Severim de Faria. A contribuição de Faria e Sousa. Progressos modernos. A tese da Infanta. O ponto de vista de Aquilino Ribeiro.

«O texto de Mariz é da maior importância documental, porque foi ele que serviu de base a grande parte do que depois, e até hoje, se repetiu. A edição é hoje tão rara que se justifica a transcrição. Depois de recordar o caso de um astrólogo que predisse a Manuel I que este viria a ser rei e foi depois mesquinhamente remunerado, escreve:
  • ‘Assim o nosso Luís de Camões, por uma obra tão famosa e de tanta utilidade para honra deste reino como este poema, e de tanto gosto de um rei tão altivo e grandioso como el-rei Sebastião, não acho que lhe fizesse maior mercê que quinze mil réis de tença, e que estes havia de vencer residindo em corte, e para isso se lhe havia de passar alvará cada três anos. Dir-me-eis: não teve graça com esse rei, mas teve-a com os mais príncipes e fidalgos. Não há tal, porque viveu. Em tanta pobreza que, se não tivera um jau, chamado António, que da Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar, não pudera aturar a vida. Como se viu, tanto que o jau morreu, não durará ele muitos meses. Pelo que venho a concluir que ou sua fortuna era tão curta como a do outro astrólogo, ou ele tinha alguma propriedade natural que afastava os homens de lhe fazerem bem, como em outros costuma causar a ingratidão. Doença de que, me dizem, ele foi tocado: e assim ficam com menos culpa os nossos príncipes’.
Segue-se uma lauda de encarecimentos literários e genealógicos, na qual refere que o pai de Camões foi Simão Vaz de Camões, natural desta cidade, o qual, indo para a Índia por capitão de uma nau, à vista de Goa deu à costa e se salvou em uma tábua e lá morreu. E continua:
  • 'E, como o nosso poeta ficou sem pai, e tão pobre que se salvou em uma tábua, em tempo que esperava ficar rico, vendo-se neste desamparo, ou, como alguns dizem, homiziado ou desterrado por uns amores no Paço da Rainha, se embarcou para a Índia. Mas nela foi sempre muito estimado assim pelo valor de sua pessoa na guerra como pela excelência do seu engenho. Mas, como era grande gastador, muito liberal e magnífico, não lhe duravam os bens temporais mais que enquanto ele não via ocasião de os despender a seu bel-prazer. Como lhe aconteceu quando foi por provedor-mor dos defuntos às partes da China, de que o viso-rei o proveu, para ver se o podia levantar da pobreza em que sempre andava envolto. Mas nem a enchente dos bens que lá granjeou o pôde livrar que em terra não gastasse o seu liberalmente. E no mar perdesse o das partes em um naufrágio que padeceu terrível, de que ele faz menção na octava 128 do canto X. E não lhe valeu a excelência de sua poesia para deixar de ser preso na Índia pelo governador Francisco Barreto e de vir capitulado a este reino. Antes do qual veio a Moçambique, para onde o capitão Pêro Barreto o trouxera da Índia, com largas promessas, de que ele em breve tempo se viu tão desenganado que, arribando ali a nau Fé, e querendo-se o Camões vir nela, ou tornar-se para a Índia, o capitão o reteve como preso até lhe pagar 200 cruzados que lhe dera na Índia para sua matalotagem e então lhe pedia como dívida. Do que, queixando-se ele a alguns fidalgos amigos que vinham na nau, eles se fintaram entre si e o desempenharam, pagando ao capitão os 200 cruzados e o trouxeram na mesma nau ao Reino, sempre à sua custa. Estes eram Heitor Silveira, António Cabral, Luís Veiga, Duarte Abreu e António Ferrão e outros. Chegaram a esta cidade no ano de 69, que acharam fechada e mui atribulada pela grande peste de que Deus nos livre. Depois disto acabou de compor e limar estes seus cantos que da Índia trazia compostos e no seu naufrágio salvara com grande trabalho, como ele diz na octava acima referida. E logo no ano de 72 os imprimiu e ficou residindo em corte por obrigação da tencinha que el-rei lhe dera. Mas tão pobre sempre que, pedindo-lhe Rui Dias Câmara, fidalgo bem conhecido, lhe traduzisse em versos os salmos penitenciais, e não acabando de o fazer por mais que para isso o estimulava, se foi a ele o fidalgo e, perguntando-lhe, queixoso, porque lhe não acabava de fazer o que lhe prometera havia tanto tempo, sendo tão grande poeta, e que tinha composto tão formoso poema, ele lhe respondeu que, quando fizera aqueles cantos, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado e cheio de muitos favores e mercês de amigos e de damas, com que o calor poético se aumentava; e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada, porque ali estava o seu Jau que lhe pedia duas moedas para carvão e ele as não tinha para lhas dar. Ora morto ele em tanta miséria, que o enterraram na Igreja de Santa Ana desta cidade, de modo que custou muito trabalho atinarem com o lugar de sua sepultura quando um fidalgo português, que só neste reino deu o primeiro balanço a sua curta ventura, lhe mandou fazer sepultura própria, mas tão raza como as do mais povo, mas com este epitáfio nela esculpido:
AQUI JAZ LUÍS DE CAMÕES,
PRÍNCIPE DOS POETAS DO SEU TEMPO.
VIVEU POBRE E MISERAVELMENTE  E ASSIM MORREU, ANO DE 1579

ESTA CAMPA LHE MANDOU AQUI POR, D. GONÇALO COUTTNHO,
NA QUAL SE NÃO ENTERRARÁ PESSOA ALGUMA

Tal é a primeira biografia de Camões». In José Hermano Saraiva, Vida ignorada de Camões, Uma História que o Tempo Censurou, Publicações Europa-América, Estudos e Documentos, 1994, ISBN 972-1-02371-X.

Cortesia de PEA/JDACT