jdact
‘A minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente em te
amar, já que a amar-te comecei’
«Não fez nada para se fixar em Portugal, onde era estimado: bastou uma
carta do seu irmão para o fazer partir daqui sem hesitar um momento. E não vim mesmo
a saber que, durante toda a viagem, mostrou sempre uma extraordinária boa
disposição? É forçoso reconhecer que sou obrigada a odiá-lo mortalmente!
Ah! Fui eu a culpada de todas as minhas desgraças: primeiro habituei-o
a uma grande paixão, onde havia demasiada simplicidade - e é preciso artifícios
para se fazer amar; é preciso procurar, com uma certa habilidade, os meios de
inflamar, pois o amor, só por si, não gera o amor.
Desejava que eu o amasse; e, como concebera esse desígnio, nada omitiu
para o conseguir; ter-se-ia mesmo resolvido a amar-me, se tal fosse necessário.
Mas viu que podia triunfar na sua empresa sem paixão e que não tinha qualquer
necessidade dela. Que perfídia! Julga que pôde enganar- me impunemente? Se
algum acaso o trouxer a esta terra, juro-lhe
que o entregarei à vingança dos meus parentes.
Por muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horroriza, e
o meu remorso persegue-me com uma violência insuportável. Sinto vivamente toda
a baixeza dos crimes que me obrigou a cometer e não tenho já, ai de mim!, a
paixão que me impedia de lhes conhecer a enormidade. Quando é que o meu coração
deixará de ser despedaçado? Quando é que me verei livre desta cruel
inquietação?
Penso, contudo, que não lhe desejo nenhum mal e que me resolveria a consentir
na sua felicidade: mas, se tem um coração bem formado, como poderá ser feliz?
Desejo escrever-lhe outra carta para lhe mostrar que estarei mais
tranquila dentro de algum tempo. Que prazer terei em poder censurar-lhe o seu
injusto procedimento, quando já não estiver tão vivamente ferida por ele e
quando lhe fizer saber que o desprezo, que falo com grande indiferença da sua
traição, que esqueci todos os meus prazeres e todas as minhas dores, que não me
lembro de si senão quando me quero lembrar!
Concordo em que tem sobre mim grandes vantagens e que me inspirou uma
paixão que me fez perder a razão. Mas pouco pode envaidecer-se com isso: eu era
jovem, era crédula, tinham-me encerrado neste convento desde a minha infância,
só tinha visto pessoas desagradáveis, nunca ouvira as lisonjas que sem cessar
me dirigia. Parecia-me que era a si que eu devia os encantos e a beleza que
dizia encontrar em mim e de que me fazia dar conta. Ouvia falar bem de si, toda
a gente me falava em seu favor e, pela sua parte, fazia quanto era preciso para
despertar o meu amor.
M as, finalmente, regressei deste encantamento. Deu-me, para tanto, uma
grande ajuda e confesso que dela tinha extrema necessidade.
Embora lhe devolva as suas cartas, guardarei cuidadosamente as duas ultimas que me escreveu, e hei-de lê-las ainda mais vezes do que li as primeiras, a fim de não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah! Quanto elas me custam, e como eu teria sido feliz se tivesse querido consentir em que o amasse para sempre!
Bem vejo que estou ainda mais ocupada do que devia estar com as minhas
censuras e com a sua indiferença. Mas lembre-se de que prometi a mim própria um
estado mais sereno e que lá hei-de chegar! Ou, então, tomarei contra mim alguma
resolução extrema, de que tomará conhecimento sem grande desgosto. Mas nada
mais quero de si.
Sou uma louca em voltar a dizer as mesmas coisas tantas vezes! É
preciso que o deixe e que não volte a pensai em si. Julgo mesmo que não
voltarei a escrever-lhe. Tenho alguma obrigação de lhe dar contas dos meus
actos?»
In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira
edição francesa de 1669, Europa América, 1974.
Fim
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT