O fogo sagrado
«Toda a casa de grego ou de romano possuía altar; neste altar devia
haver sempre restos de cinza e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada
casa conservar o fogo dia e noite. Desgraçada casa aquela onde o fogo se
extinguisse! Ao anoitecer de cada dia se cobriam de cinza os carvões, para
deste modo se evitar que eles se consumissem inteiramente durante a noite; ao
despertar, o primeiro cuidado do homem era avivar o fogo e alimentá-lo com
alguns ramos secos. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando toda a
família havia morrido; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas
entre os antigos.
E, evidentemente, o uso de manter-se sempre o fogo sobre o altar
remonta a antiga crença. As regras e os ritos observados a este respeito
mostram-nos não ser então este entre as gentes um qualquer costume
insignificante. Não lhes era permitido alimentar este fogo com qualquer espécie
de madeira; a religião distinguia, entre as árvores, aquelas espécies que
podiam ser empregadas com este fim, e aquelas outras de que era impiedade
servirem-se. A religião ensinava ainda como este fogo devia permanecer sempre puro,
o que em sentido literal significava que nenhum objecto sujo lhe devia ser
atirado e que, em sentido figurado, nenhuma acção culposa deveria cometer-se em
sua presença. Havia determinado dia no ano, entre os romanos, o 1º de Março, no
qual cada família devia apagar o seu fogo sagrado e reacender logo outro em seu
lugar. Mas, para se acender o novo fogo havia ritos que necessariamente tinham
de ser observados com todo o escrúpulo. Deviam sobretudo evitar fazer lume
usando de ferro e pederneira. Os únicos métodos permitidos eram os de fazer
incidir num ponto o calor dos raios solares ou de friccionar dois pedaços de
madeira de determinada espécie e deles fazer saltar a faísca.
Estas diferentes regras provam de sobejo como não estava no juízo dos
antigos apenas o facto de produzir ou de conservar um elemento útil e
agradável; estes homens viam mais do .que isso no fogo que ardia sobre os
altares.
Este fogo tinha algo de divino; adoravam-no, prestavam-lhe verdadeiro
culto. Davam-lhe como oferenda tudo quanto julgavam pudesse agradar a um deus:
flores, frutas, incenso, vinho. Imploravam-lhe protecção, que supunham
poderosa. Dirigiam-lhe fervorosas preces para dele conseguirem os fins eternos
desejados por todo o homem, saúde, riqueza, felicidade. Uma destas orações, que
nos foi conservada numa colecção de hinos órficos, está assim concebida:
- ‘Torna-nos sempre prósperos, sempre felizes, ó lar; ó tu que és eterno, belo, sempre novo, tu que nutres, tu que és rico, recebe de bom coração as nossas oferendas, dando-nos em troca a felicidade e a saúde que é tão doce’.
Assim, via-se no lar o deus benfazejo conservador da vida do homem, o
deus rico alimentando-o com os seus dons, o deus forte protector da casa e
família. Em presença de qualquer perigo, procurava-se refúgio junto dele.
Quando o palácio de Príamo foi invadido, Hécuba arrasta o velho rei para junto
do lar:
- ‘As tuas armas não saberão defender-te, diz-lhe ela, mas este altar nos protegerá a todos’.
In A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, Livraria Clássica Editora,
Lisboa, 1981.
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