terça-feira, 11 de setembro de 2012

Vida Ignorada de Camões. Uma História que o Tempo Censurou. José Hermano Saraiva. «Quem ler de espírito alerta fica com a impressão de que os primeiros biógrafos sabiam mais do que disseram, mas lá teriam as suas razões para não falar. Quem publicou, pela primeira vez, uma vida de Camões foi Pedro Mariz»


Botticelli, 'Venus e Marte', 1480
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O que se sabe e não sabe da vida de Camões
A mais antiga biografia de Camões. Que queria provar Pedro Mariz? Os informes de Severim de Faria. A contribuição de Faria e Sousa. Progressos modernos. A tese da Infanta. O ponto de vista de Aquilino Ribeiro.

«Documentos autênticos sobre a vida de Camões, documentos originais e indiscutidos, daqueles que ninguém põe em dúvida, sabe-se de sete: o perdão do rei pela cutilada na cabeça de um empregado do paço em dia de Corpo de Deus de 1552, o privilégio da publicação de “Os Lusíadas” e o alvará da tença de 15 000 réis durante três anos; os outros quatro são prorrogações do prazo da tença. Nesses factos há que crer; tudo o mais que se sabe sobre a vida do poeta vem de fonte menos límpida: ou de tradições baseadas no relato dos primeiros biógrafos, ou de interpretações, que cada qual tece a seu gosto, das numerosas referências que Camões faz, ou parece fazer, à sua vida, em muitos poemas líricos. Em suma, o que se sabe ao certo é quase nada, o que se conjectura quase tudo.
Quem ler de espírito alerta fica com a impressão de que os primeiros biógrafos sabiam mais do que disseram, mas lá teriam as suas razões para não falar. Quem publicou, pela primeira vez, uma vida de Camões foi Pedro Mariz. Fê-lo numa espécie de prefácio, ‘Ao Estudioso da Lição Poética’, foi como ele lhe chamou, que antecede a edição de “Os Lusíadas” de 1613. A história dessa edição é bem esquisita. O que Pedro Mariz conta é que havia um admirador de Camões, chamado Manuel Correia, que passou muitos anos de vida a fazer um comentário de “Os Lusíadas”, mas morreu sem o publicar; os papéis foram postos em leilão e ele, Mariz, comprou-os e imprimiu-os. Mas, ao mesmo tempo, diz que, antes de os imprimir, os modificou e que Manuel Correia lhe dera autorização para isso. O mais esquisito é que o livro também tem um prefácio do Manuel Correia, que explica, que fez o seu comentário a pedido de um amigo; Camões, que ele conhecia, instou com ele para que publicasse, mas apareceram logo amigos que lhe tiraram essa ideia da cabeça. Finalmente, resolveu-se a dar o livro ao prelo:
  • Hoje o faço, só por sair pela honra de Luís de Camões, que por esta sua obra não ser entendida de todos, é caluniada de muitos.
Estas duas histórias casam mal uma com a outra. O livro tem ainda um outro antelóquio, o do editor, sobre o qual toda a gente passa por alto. Refiro-o porque também não afina com o de Mariz, que escreve ter pertencido Camões à nobreza de melhor sangue que Portugal produziu. O editor diz outra coisa: falando de “Os Lusíadas”, diz que as obras que nele se referem são heróicas, a linguagem português, o autor humilde.
E aqui temos como logo na primeira obra biográfica o poeta aparece nobre e humilde. Mas a posteridade agarrou-se ao nobre e o humilde ficou esquecido.
Quando se publicou esta edição, tinham passado trinta e três anos sobre a morte de Camões. Da geração que conhecera o poeta na juventude, antes do embarque para a Índia, poucos sobreviventes haveria: Camões, se fosse vivo, teria então perto de 90 anos. Mas do Camões da última fase da vida muita gente se lembraria ainda; os homens que em 1580 tinham 20 anos pouco passavam então dos 50. Bastava que tivesse publicado “Os Lusíadas” para que um ‘humilde’ se fizesse notado. Mas não havia só isso.
Que história estava por detrás do veemente, acusador letreiro da sepultura? Cada qual contava as coisas a seu modo. As opiniões certamente se dividiam, como no poema recolhido no ‘Cancioneiro de D. Maria de Portugal’:

Devindense los corrillos
de lo ilustre a lo plebeyo,
y votan alli su acaso
fue ben hecho, fue mal echo ...

E Mariz, homem da classe media e nascido em 1550, já tinha 30 anos à data da morte de Camões. Conhecia certamente os factos, ou, pelo menos, o que deles se dizia. Mas decidiu lavar dali as suas mãos. Partiu do princípio de que toda a gente sabia a história e não deixou de, para bom entendedor, marcar a sua posição: fue mal echo. Para ele, o culpado foi Camões, que sofreu o feio vício da ingratidão». In José Hermano Saraiva, Vida ignorada de Camões, Uma História que o Tempo Censurou, Publicações Europa-América, Estudos e Documentos, 1994, ISBN 972-1-02371-X.

Cortesia de PEA/JDACT