«Dito isto, e já com modos de grande dama, seguida por Constança,
regressou ao assento, junto da janela. Contudo, Constança continuava calada e a
olhá-la com aqueles olhos imensos, inquisidores e muito abertos. Inês percebeu
que, se queria derreter o gelo, tinha de tomar a iniciativa. Apontando para o
céu, comentou:
- Olha aquela nuvem, senhora, parece um cão.
Misturava as formas de tratamento. Sabia que Constança não era mais uma
das companheiras de folguedos que tinha tido até então mas, pela idade e por
uma estranha cumplicidade que se ia estabelecendo entre ambas, não sabia bem se
devia dar-lhe o tratamento devido à sua classe. Toda a sua vida continuava a
manter esta ambiguidade de trato, nascida mais do hábito e do carinho mútuo do
que da vontade expressa, por parte de Inês, de encurtar distâncias.
- Na Galiza andava sempre acompanhada por um cachorro a que pus o nome
de Albo, porque tinha o pelo branco, da cor daquela nuvem. Não tendes um cão
para vos acompanhar?
- Tive um, no lugar onde vivi até há pouco tempo. Foi uma sorte tê-lo.
Era a única companhia da minha solidão e, quando se acercava e me lambia as
mãos, confortava-me pensar que ele, ao menos, gostava de mim.
- Confortava-vos? Então, onde vivíeis que tão só estáveis? -É uma
história comprida, Inês. Tentarei explicar-vos. Por azar e devido aos negócios
do meu pai, fui privada da sua companhia e recolhida num castelo afastado, sem
mais amigos que a minha ama e o cão. O resto, tudo hostilidade e silêncio. Inês,
em ‘A Limia’, vivias com gente da tua idade? Inês olhou-a com dó. Até então
tinha tomado o silêncio de Constança por indiferença, ou até por desprezo pela
sua condição.
Porém, as palavras dela confirmavam os rumores sobre o frustrado compromisso
matrimonial de Constança com o rei Afonso XI de Castela. O seu mutismo era,
portanto, a consequência inevitável de ter crescido em solidão e afastada de
tudo o que amava.
Voltou a recordar-se do solar familiar de ‘A Limia’. Vieram-lhe à memória
as correrias por entre carvalhos e azinheiras, rindo-se com os irmãos e
escondendo-se da ama nas sombras do bosque e não pôde deixar de sentir pena de
Constança. Aquela menina de doze anos, que lhe havia parecido distante pelo seu
silêncio, era, no fundo, digna de compaixão. Não era ela, Inês, a parente
pobre, que precisava de companhia. Sorriu-lhe abertamente e, como era seu costume,
em vez de explicar quem tinham sido os seus companheiros na Galiza,
respondeu-lhe com outra pergunta.
- Não gostarias de ter um cão?
Ao contrário do que pensara, e como vaticinara a ama, Inês habituou-se
rapidamente a Peñafiel. A chave foi Nieve, um cachorro branco, brincalhão e
travesso que, perante o assombro da amiga, obteve sem dificuldade da
generosidade do infante João Manuel. Os olhos inocentes e escuros do cão, as
suas correrias de uma para a outra, a obrigação de encher-lhe a escudela ou a maneira
que tinha de aninhar-se alternadamente nos dois regaços, criaram entre ambas a
cumplicidade própria de pessoas que têm uma tarefa comum.
Constança, se bem que não tão formosa quanto Inês, era de trato suave e
agradável e, pouco a pouco, abandonou o hábito de se recolher em si própria e
começou a abrir-se ao encanto indiscutível da recém-chegada. A jovem filha de João
Manuel era uma menina introvertida e dócil que, com o tempo, iria converter-se numa
mulher resignada, de sorriso fugaz e palavras brandas. Talvez por isso,
apreciava o riso franco de Inês, o seu carácter inquieto e até a sua capacidade
de correr em campo aberto, de se relacionar com criados e senhores ou a
desenvoltura com que, se necessário, trepava às árvores do pomar ou se encarcapitava
pelos declives da colina em que assentava o castelo. Além disso, o infante João
Manuel não se revelou um amo zeloso ou severo, e a presença de Maria del Carrión
contribuiu para aplacar qualquer assomo de melancolia.
De facto, o carinho com que os 'Manuel' a tratavam compensava a falta de
comodidades do castelo e a inclemência de um clima que a incomodava. Na Galiza,
sempre a sua pele fora fresca e elástica, aqui ficava seca e pouco flexível.
Tinha de pigarrear constantemente para aclarar a voz e de molhar os cabelos com
água de rosas para manter aquela ondulação de que tanto se orgulhava. Inês, que
nunca havia experimentado frios ou calores extremos, sentia-se agora gelar no
Inverno e parecia morrer de calor durante o Verão. Contudo, tal como a pele se
suavizava com o bálsamo que, receita herdada de uma serva moura, Constança lhe
aplicava na testa e nas faces, o trato afectuoso que esta lhe proporcionava
tranquilizava-lhe a alma e via-se, cada vez com maior frequência, a dar graças
a Deus pela sorte que tivera.
Bastaram poucos dias para se perceber que as duas amigas eram o verso e
o reverso de uma mesma moeda. Sensíveis, inteligentes e refinadas, se o que
sobressaía em Inês era a luminosidade e o calor do amanhecer, em Constança era
a serenidade e o recolhimento do ocaso». In Inês de Castro, María Pilar Queralt
de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
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