«Há que pensar contudo num contexto epocal. Porquê uma tão longa travessia
entre 1890 e 1930? Porque apesar das heterogeneidades, existe uma homogeneidade
nestes quarenta anos. O final do século pode de algum modo ser o sintoma de uma
profunda crise social com expressão política na contestação da monarquia. Assim
como 1930 é o início de um longo período salazarista. Entre as crises
institucionais da monarquia e o Estado Novo. Com um início do século que só principia
verdadeiramente após a primeira Guerra Mundial de 14-18.
Também do ponto de vista dos comportamentos mentais, encontramos na
mulher de final do seculo e até 1918 uma mesma postura tradicional, que os anos
20 de algum modo vão revolucionar: numa determinada classe social mais elevada.
Porque em níveis inferiores as mudanças não são significativas.
Que mulher burguesa, a de final do século? Com uma educação sobretudo
familiar, em trânsito entre a casa dos pais e a do marido, a nossa burguesa é a
coqueluche de um espaço doméstico, mãe e procriadora. Não um ser pensante, com
interesses variados para além da modista, da casa e das mundanidades.
Os anos 20 iniciam paulatinamente uma outra forma de estar da mulher
burguesa. Desde as modas que além Pirenéus atravessam fulgurantemente, através
de revistas da especialidade, uma Lisboa bem mais pacata, até à pequena elite
de intelectuais que frequentavam a Universidade, escreviam poemas e romances ou
tentavam, de tribunas feministas, intervir politicamente.
Tudo isto numa santa paz e numa moderação bem portuguesas.
Procurámos percorrer trilhos. Sinuosos sem dúvida. Mas ainda assim ocorreu-nos
partir a conquista desse quotidiano. O resultado é a tentativa de
reconstituição de um espaço de estar e de sentir.
Influências estrangeiras nos modelos de conduta
Difícil será a abordagem dos modelos estrangeiros que influenciaram decisivamente
ou de uma forma assinalável o nosso modo de ser quotidiano no período que nos
interessa de 1890 a 1930. De qualquer forma, as influências só se manifestaram
nas classes com um maior poderio económico, aquelas mesmas que usufruíam do ponto
de vista da moda e da educação os ditames provenientes de França, de Inglaterra
ou dos Estados Unidos.
É um facto que a mulher burguesa lia romances, folheava revistas, ia à
modista vestir-se segundo os cânones estrangeiros. Que influências afinal? Que
estratégias de sedução? Que níveis de apropriação do exterior e em que
domínios?
De entre os autores lidos sondámos os que na realidade penetravam ao
nível da interioridade doméstica. Pela frequência com que eram traduzidos,
inseridos que se encontravam em colecções populares, de grande audiência.
Procurámos revistas femininas. Detectámos as informações mais precisas e
incisivas sobre a realidade da mulher burguesa.
Se o modelo francês imperava nitidamente sobre os demais entre 1890 e
1930, os anos 20 anunciam a penetração da influência do modelo norte americano
e inglês nos nossos hábitos e costumes. Através da via do cinema, sobretudo. E
era também o mundo profissional que se abria pela primeira vez a mulher
burguesa, por exemplo.
Toda a pesquisa no quadro das mentalidades e morosa e difícil. Um primeiro
aspecto: o historiador tem de ser um pesquisador atento do quotidiano, para
poder analisá-lo e recriá-lo perante o leitor.
Há uma questão inicial a considerar quando se dispõe de problemáticas
diversas no que respeita às influências estrangeiras nos modelos de comportamento
femininos: o modelo francês é dominante sobre os demais. O que aliás não é
particularmente uma novidade tendo em conta a tradicional proximidade cultural
da França em relação ao nosso País. As leituras que se faziam, desde a
adolescência até à idade adulta, eram de autores franceses. As bibliotecas de
lar, destinadas às senhoras, eram no essencial de autores de língua francesa.
Ao nível dos comportamentos também se procurava, na moda, no estar, uma aproximação
com a França. Em meados do século XIX as leituras femininas rondavam em torno
de Balzac, Sue, Sand, Dumas, Scribe, Arlincourt. No final do século ainda se
liam esses nomes, e outros se adiantavam.
Balzac, sempre ele, Zola, Victor Hugo, Anatole France ou mesmo em André
Theuriet em os títulos Ciúmes de Mulher
ou Maria, a Infeliz.
Musset não era esquecido. Paul Margueritte também não. Nos anos 20 as
preferências vão para Henri Ardel, Clement Vautel e Maurice Dekobra. Colette
era lida em francês pelas camadas mais cultas». In Cecília Barreira, História
das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri,
Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.
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