«Esta narrativa, feita na terceira pessoa, está dividida em cinco
partes, designadas na obra como ‘folhetos’. A seguir ao título Obras do Diabinho da Mão Furada lê-se o
seguinte esclarecimento que indica o seu objectivo moralizador e impede
qualquer interpretação diabólica da obra:
- ‘para espelho de seus enganos e desengano de seus arbítrios. Palestra moral e profana, donde o curioso aprenda para a doutrina ditames e para o passatempo recreios’.
No proémio aponta-se o livre arbítrio como tema fundamental da obra. O
impenetrável e misterioso que envolve o destino do homem e a vontade livre com
que deve obrar para se salvar constituem um dos grandes temas teológico-filosóficos
dos séculos XVI e XVII que encontraram a sua expressão artística na literatura
peninsular, sobretudo na época seiscentista. Além disso, alude-se no mesmo
proémio ao fundo fabuloso sobre o qual emerge a ideia da obra:
- ‘Nem sempre se podem escrever histórias verdadeiras, políticas e exemplares; também do fabuloso e jocoso se colhe muito fruto, por ser salsa para desfastio da doutrina que nela se pode envolver aos que se aplicam mais à ociosidade ilícita que à lição dos livros espirituais e graves’.
Na composição das Obras do
Diabinho distinguem-se, pois, dois planos: um o do mundo real, outro o do
sobrenatural. Há dois protagonistas em torno dos quais se desenrolam os
episódios, além de outras personagens secundárias. O soldado Peralta representa
o mundo visível e tangível, e o Diabinho o mundo misterioso e secreto.
A realidade é na obra o caminho que o soldado tem a percorrer e os
incidentes da viagem; o sobrenatural são as visionárias aventuras que o Diabo
lhe vai proporcionando. Este duplo plano manifesta-se em toda a composição da
novela. A vida material opõe-se a outra, fantástica e apocalíptica.
Os elementos reais, episódios ancorados na realidade, vão-se
entrelaçando, como elos de uma cadeia, com os sobrenaturais, episódios que pertencem
a um mundo mágico, expressos em sonhos e visões. Mas não há apenas uma
justaposição de sucessos reais e irreais; o sobrenatural e enigmático
insere-se, pela presença do Diabo, até nos momentos em que se descreve o humano
e terreno- A linguagem usada para a descrição dos episódios de carácter real
compõe-se de ditos e refrões populares, contrastando assim com os de tema
irreal em que abundam as alusões eruditas.
A dualidade visível em toda a obra, jogo entre o concreto e o abstracto,
é expressão da atitude antitética da arte barroca, cujo efeito de claro-escuro
é considerado como uma das peculiaridades do barroco literário espanhol. [...]»
In Ulla Trullemans, Huellas de la picaresca en Portugal, Madrid, Insula, 1968, História
Crítica da Literatura Portuguesa, Lisboa, Verbo, 1998, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004.
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