terça-feira, 11 de setembro de 2012

Diabinho da Mão Furada: uma novela picaresca? Ulla Trullemans. «O impenetrável e misterioso que envolve o destino do homem e a vontade livre com que deve obrar para se salvar constituem um dos grandes temas teológico-filosóficos…»



Cortesia de wikipedia

«Esta narrativa, feita na terceira pessoa, está dividida em cinco partes, designadas na obra como ‘folhetos’. A seguir ao título Obras do Diabinho da Mão Furada lê-se o seguinte esclarecimento que indica o seu objectivo moralizador e impede qualquer interpretação diabólica da obra:
  • ‘para espelho de seus enganos e desengano de seus arbítrios. Palestra moral e profana, donde o curioso aprenda para a doutrina ditames e para o passatempo recreios’.
No proémio aponta-se o livre arbítrio como tema fundamental da obra. O impenetrável e misterioso que envolve o destino do homem e a vontade livre com que deve obrar para se salvar constituem um dos grandes temas teológico-filosóficos dos séculos XVI e XVII que encontraram a sua expressão artística na literatura peninsular, sobretudo na época seiscentista. Além disso, alude-se no mesmo proémio ao fundo fabuloso sobre o qual emerge a ideia da obra:
  • ‘Nem sempre se podem escrever histórias verdadeiras, políticas e exemplares; também do fabuloso e jocoso se colhe muito fruto, por ser salsa para desfastio da doutrina que nela se pode envolver aos que se aplicam mais à ociosidade ilícita que à lição dos livros espirituais e graves’.
Na composição das Obras do Diabinho distinguem-se, pois, dois planos: um o do mundo real, outro o do sobrenatural. Há dois protagonistas em torno dos quais se desenrolam os episódios, além de outras personagens secundárias. O soldado Peralta representa o mundo visível e tangível, e o Diabinho o mundo misterioso e secreto.
A realidade é na obra o caminho que o soldado tem a percorrer e os incidentes da viagem; o sobrenatural são as visionárias aventuras que o Diabo lhe vai proporcionando. Este duplo plano manifesta-se em toda a composição da novela. A vida material opõe-se a outra, fantástica e apocalíptica.
Os elementos reais, episódios ancorados na realidade, vão-se entrelaçando, como elos de uma cadeia, com os sobrenaturais, episódios que pertencem a um mundo mágico, expressos em sonhos e visões. Mas não há apenas uma justaposição de sucessos reais e irreais; o sobrenatural e enigmático insere-se, pela presença do Diabo, até nos momentos em que se descreve o humano e terreno- A linguagem usada para a descrição dos episódios de carácter real compõe-se de ditos e refrões populares, contrastando assim com os de tema irreal em que abundam as alusões eruditas.
A dualidade visível em toda a obra, jogo entre o concreto e o abstracto, é expressão da atitude antitética da arte barroca, cujo efeito de claro-escuro é considerado como uma das peculiaridades do barroco literário espanhol. [...]» In Ulla Trullemans, Huellas de la picaresca en Portugal, Madrid, Insula, 1968, História Crítica da Literatura Portuguesa, Lisboa, Verbo, 1998, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

Cortesia da FCG/JDACT