quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «Estamos nus, deitados no papel, críticos e criticados. Mau será quando não olham ou nos retiram à força da paisagem. Só quando nos olham, cortam, retalham, entramos na herança colectiva»


jdact
   
No parágrafo atrás contrapõem-se os objectivos políticos imediatos dos marxistas e dos proclamados defensores do idealismo político à ‘investigação objectiva’ de que implicitamente o autor do parágrafo aparece investido.
Pergunto. Ao diminuir as obras dos autores citados (diminui-as cientificamente quando as contrapõe à investigação objectiva); ao’maculá-las’, na sua perspectiva, com objectivos políticos imediatos; ao riscá-las a traço azul com o ‘paralisaram a investigação objectiva’, não estará José Matoso a fazer uma certa política, tentando arredar do terreno da discussão científica as obras dos autores citados? Acaso nenhum destes pobres esconjurados conseguiu alcançar alguma vez o privilégio da investigação objectiva? Consistirá ela tão-só em ler as letras dobradas de mais um documento ainda não publicado? Não assentará acaso na leitura-interpretação, na leitura do visível e do invisível desses documentos? Estará a relacionação fora da objectividade científica? Deverá a história social, que põe em jogo todos os valores, ficar de fora porque escalda, mexe e implicitamente acusa? E nenhum dos autores citados atrás teria acaso descoberto, também ele, um documento inédito com muitas consoantes e vogais dobradas?
As obras dos autores citados não paralisaram a investigação: iluminaram o campo. Conseguiram até que José Mattoso, envergando as roupagens da investigação objectiva, empunhasse com denodo no seu ensaio a velha e enferrujada lança da luta de classes.
Como qualquer mortal, historiador ou não, sou linguagem, estilo. Não posso nem quero desfazer-me deles. Como as impressões digitais, também a fala é pessoal e com inflexões únicas. Tal não significa que cada autor tenha de ter ideias diferentes ou transportar cada um a sua tese ou ideia explicativa. Sob o suporte material das palavras, há que descobrir as ideias, partilhando-as, duvidando ou rejeitando. As próprias palavras que cada um vocaliza de maneira pessoal são partilhadas e partilháveis, constituem produção e herança milenar dos povos.
Quando as letras se imobilizarem no branco da página, este novo texto, como qualquer outro, tornou-se um documento, rico ou pobre, da nossa própria época. Não é possível fugir. Estamos nus, deitados no papel, críticos e criticados. Mau será quando não olham ou nos retiram à força da paisagem. Só quando nos olham, cortam, retalham, entramos na herança colectiva.
Estes textos-documentos, por mais herméticos, independentemente da sua valia, revelam imediatamente um corpo vocabular e um estilo, como dissemos. Este poderá ser emotivo ou frio, cauteloso ou imprudente. Por outro lado, o texto assenta numa arquitectura conceptual (que é datável) ou na sua falta (a ruína do edifício está iminente, se alguma vez conseguiu estar de pé). Revela leituras, ideias dominantes, informações novas ou velhas e, por vezes, o milagre do novo.


Luta de Classes?
Sob o título Luta de Classes? Questionou José Mattoso as estruturas e as tensões da sociedade portuguesa na segunda metade do século XIV. O texto abre com a epígrafe: não havia condições para uma ‘transformação radical das estruturas sociais’. Porquê? Porque não havia ‘consciência de classe’ devido à compartimentação política tanto a unível senhorial’, como a ‘nível municipal’; porque não havia acumulação de capitais, grandes cidades ou importantes massas proletárias.
O autor de Luta de Classes? Vai usar repetidas vezes no seu ,texto a expressão “revolução de 1383” mas, à partida, inclina-se para a sua negação.
A conjuntura era propícia aos conflitos sociais; o ‘terceiro estado’ revela tensões latentes, devido à pressão ‘das classes privilegiadas e à crescente intervenção do Estado na administração municipal’, escreve.
E avança:
  • ‘é de prever participação maciça em 1383 da arraia-miúda estará a pensar na revolta dos mesteirais’.
Noutro passo, admite que os mesteirais tiveram um papel de primeiro plano e que a burguesia tentou a seguir a sua oportunidade, embora o resultado tivesse sido a reposição da ordem social anterior (tese de Joel Serrão?)». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Continua
Cortesia da Caminho/JDACT