No parágrafo atrás contrapõem-se os objectivos políticos imediatos dos
marxistas e dos proclamados defensores do idealismo político à ‘investigação
objectiva’ de que implicitamente o autor do parágrafo aparece investido.
Pergunto. Ao diminuir as obras dos autores citados (diminui-as
cientificamente quando as contrapõe à investigação objectiva); ao’maculá-las’,
na sua perspectiva, com objectivos políticos imediatos; ao riscá-las a traço
azul com o ‘paralisaram a investigação objectiva’, não estará José Matoso a
fazer uma certa política, tentando arredar do terreno da discussão científica
as obras dos autores citados? Acaso nenhum destes pobres esconjurados conseguiu
alcançar alguma vez o privilégio da investigação objectiva? Consistirá ela
tão-só em ler as letras dobradas de mais um documento ainda não publicado? Não
assentará acaso na leitura-interpretação, na leitura do visível e do invisível
desses documentos? Estará a relacionação fora da objectividade científica?
Deverá a história social, que põe em jogo todos os valores, ficar de fora
porque escalda, mexe e implicitamente acusa? E nenhum dos autores citados atrás
teria acaso descoberto, também ele, um documento inédito com muitas consoantes
e vogais dobradas?
As obras dos autores citados não paralisaram a investigação: iluminaram
o campo. Conseguiram até que José Mattoso, envergando as roupagens da investigação
objectiva, empunhasse com denodo no seu ensaio a velha e enferrujada lança da
luta de classes.
Como qualquer mortal, historiador ou não, sou linguagem, estilo. Não
posso nem quero desfazer-me deles. Como as impressões digitais, também a fala é
pessoal e com inflexões únicas. Tal não significa que cada autor tenha de ter
ideias diferentes ou transportar cada um a sua tese ou ideia explicativa. Sob o
suporte material das palavras, há que descobrir as ideias, partilhando-as,
duvidando ou rejeitando. As próprias palavras que cada um vocaliza de maneira
pessoal são partilhadas e partilháveis, constituem produção e herança milenar
dos povos.
Quando as letras se imobilizarem no branco da página, este novo texto,
como qualquer outro, tornou-se um documento, rico ou pobre, da nossa própria
época. Não é possível fugir. Estamos nus, deitados no papel, críticos e
criticados. Mau será quando não olham ou nos retiram à força da paisagem. Só
quando nos olham, cortam, retalham, entramos na herança colectiva.
Estes textos-documentos, por mais herméticos, independentemente da sua
valia, revelam imediatamente um corpo vocabular e um estilo, como dissemos.
Este poderá ser emotivo ou frio, cauteloso ou imprudente. Por outro lado, o
texto assenta numa arquitectura conceptual (que é datável) ou na sua falta (a
ruína do edifício está iminente, se alguma vez conseguiu estar de pé). Revela
leituras, ideias dominantes, informações novas ou velhas e, por vezes, o
milagre do novo.
Luta de Classes?
Sob o título Luta de Classes? Questionou José Mattoso as estruturas e
as tensões da sociedade portuguesa na segunda metade do século XIV. O texto
abre com a epígrafe: não havia condições para uma ‘transformação radical das
estruturas sociais’. Porquê? Porque não havia ‘consciência de classe’ devido à
compartimentação política tanto a unível senhorial’, como a ‘nível municipal’;
porque não havia acumulação de capitais, grandes cidades ou importantes massas
proletárias.
O autor de Luta de Classes? Vai
usar repetidas vezes no seu ,texto a expressão “revolução de 1383” mas, à
partida, inclina-se para a sua negação.
A conjuntura era propícia aos conflitos sociais; o ‘terceiro estado’ revela
tensões latentes, devido à pressão ‘das classes privilegiadas e à crescente
intervenção do Estado na administração municipal’, escreve.
E avança:
- ‘é de prever participação maciça em 1383 da arraia-miúda estará a pensar na revolta dos mesteirais’.
Noutro passo, admite que os mesteirais tiveram um papel de primeiro
plano e que a burguesia tentou a seguir a sua oportunidade, embora o resultado
tivesse sido a reposição da ordem social anterior (tese de Joel Serrão?)». In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
Continua
Cortesia da Caminho/JDACT